Em 4 de janeiro de 1913 nasceu o primeiro filho do casal Adalgisa
Leite e Melquiades Cardoso, um serrador, como vários outros que existiam no
povoado, numa época em que tudo dependia da madeira e a mata nativa era rica em
madeiras de lei. Recebeu o nome de Dirceu na pia bastimal, depois vieram
Nadege, Danilo, Evelin, Expedito e Brissac. Quando Dirceu começou a andar, a
luz elétrica estava chegando, as lamparinas foram aposentadas e aqueles postes
sextavados era uma lembrança do passado. A Fábrica passou a produzir mais e os
passeios noturnos pelas ruas empoeiradas ou enlamaçadas eram possíveis, até o
hábito de dormir mais tarde foi mudado pelo advento da luz elétrica.
Como todos os meninos da época, Dirceu batia sua bola e devia se
banhar no Ribeirão Santo Antônio, que era muito menos poluído. Para ajudar nos
estudos, comprar seus cadernos, sua tabuada e uma gramática, vendia goiabada na
rua. Tudo era muito difícil, escola, professores, mas ele não se deixava abater
pelo que faltava, mas devia ser um menino que vivia sua infância bem vivida.
Fez o primário G. E. Dr. Ferreira da Luz e o secundário no Colégio Miracemense,
antes denominado Instituto Afrânio Peixoto.
Por esta época deve ter acompanhado, muitas vezes, a Banda Sete de
Setembro levar o italiano José Giudice até a Estação quando ia para o Rio de
Janeiro a negócios e na volta era o mesmo espetáculo: a Banda iria buscá-lo na
Estação até a sua residência. Era o principal comerciante do distrito e dotado
de grande espírito público, ajudava toda iniciativa que viesse em benefício de
Miracema.
O distrito vivia uma febre de construções, em face da grande
produção de café, casa de dois andares e os grandes casarões começam a ser
erguidos na Rua Direita, mas em 1929, veio a crise do café, e o distrito, de
uma hora para outra, ficou pobre, toda a produção seria queimada para
valorizá-la. Dirceu estava com 16 anos e tendo concluído o curso secundário, o
máximo no distrito, manifestou aos pais o desejo de estudar direito e lá se foi
para Niterói para cursar a faculdade. Foram quatro anos de estudos e aos vinte
estava formado, mas não tinha dinheiro para comprar o terno e não participou da
tradicional festa de Formatura.
Voltou à terra natal para lecionar no Colégio Miracemense, nos
idos de 1933, como professor de História Natural e Biologia. O interventor do
município de Pádua, Altivo Linhares, neste ano, passa a responder um processo
criminal em Petrópolis e teve que se afastar da interventoria, passando a
prefeitura para Cícero Garcia Bastos.
Com o afastamento de Linhares, a Campanha Separatista ganha fôlego
e o jovem advogado de 20 anos de idade, torna-se um dos principais oradores dos
comícios que se sucedem quase todos os fins de semana, em cada esquina, em cada
bairro. Por esta época, no Cine Sete de Setembro passava um filme denominado
“Os Quatro Diabos”, com façanhas incríveis e, no distrito, a população viu
semelhança com os quatro oradores da Campanha: Bruno de Martino, José Naegele,
Melquiades – seu pai – e Dirceu. “O Libertas” era rodado na Gráfica do
Neguinho, insuflando mais ainda a campanha.
No ano seguinte, o interventor afastado, Altivo Linhares, capitula
e dá uma carta a Dirceu para ser entregue ao Almirante Ary Parreiras,
concordando com a separação do distrito e um ano após é instalado oficialmente
o novo município pelo Almirante Protógenes Guimarães. Dirceu não foi
aproveitado pelos novos governantes, então aceitou um convite para lecionar
numa pequena cidade do Espírito Santo, Muqui, que havia fundado um Colégio há
dois anos apenas e precisava de professores para integrar o seu corpo Docente.
Dirceu aceita mudar-se e num discurso pronunciado aqui, ele queixou-se que teve
que abandonar Miracema “tangido pelos ventos da desgraça e da desventura
política.”
Em Muqui ele se firma como um ótimo professor, enérgico e
disciplinador. Foi lá também que conheceu Lisete, a filha do proprietário do
Colégio e se casa com ela. É alçado à direção do Educandário e o projeta na
região e depois no Estado, chegando a ter 355 alunos, com internato masculino e
feminino. Gostava de esportes e o Colégio de destaca também nos embates
esportivos, onde se praticava muitas modalidades. Alugou um trem em Muqui e
trouxe o seu Colégio para uma olimpíada em Miracema durante uma semana com o
Miracemense. A esta altura já é a personalidade de maior projeção em Muqui.
Com o fim da Ditadura Vargas, em 1945, sua vocação política o leva
a disputar a Prefeitura de Muqui, sendo eleito prefeito da cidade pelo PSD. Com
o orçamento minguado, construiu um pequeno galpão com mais de uma dezena de
tanques para as lavadeiras pobres da cidade, que passaram a ter um lugar à
sombra para lavar suas roupas, o “Parque das Lavadeiras”. Aos domingos,
acompanhado de um médico, enfermeiros e barbeiro, visitava a população carente.
Homem de temperamento explosivo andou tendo sérios e graves problemas com os
vereadores.
A fama de educador, de bom orador, de bom administrador o
credencia para a disputa de uma vaga a Deputado Estadual, onde se elege com boa
votação, aos 37 anos e se firma na Assembleia como líder do Governo de Jones
dos Santos Neves, que foi o governador que abriu estradas, construiu a Usina
Hidrelétrica de Rio Bonito, o Porto de Vitória e a Universidade Estadual do
Espírito Santos. Na Assembleia era temido e respeitado e teve embates
acalorados com seus pares que ficaram famosos em sua vida parlamentar no
Estado, pela sua valentia e coragem.
Aos 41 anos é reeleito com uma votação expressiva, novamente na
liderança do governo, agora de Carlos Lindemberg, também uma das grandes
figuras capixabas. Já é o deputado mais conhecido no Estado e esse fato o
credencia a Deputado Federal, sendo eleito aos 45 anos com uma das maiores
votação. O orador da Campanha Separatista de Miracema é a estrela maior das
concentrações públicas, vibrante, ardoroso e, sobretudo, destemido. Fixa
residência no Leblon e novamente o povo capixaba o recomenda à Câmara Federal.
Nos doze anos que passou na Câmara, integrou várias Comissões como a de
Educação ao lado de Carlos Lacerda e Santiago Dantas, quando definiram a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação no Brasil. Visitou dez Universidades Americanas,
como membro desta comissão. Foi nomeado pelo Presidente da República como
representante do Brasil na ONU, com sede em Nova York juntamente com Paulo Brossard.
Da ONU Dirceu Cardoso aproveitou a oportunidade de remeter a todas
às Câmaras do Espírito Santo e do Brasil, mensagem na qual ressalta que, depois
de galgar todas as representações legislativas, reconhecia que o voto mais
difícil e representativo era o do Vereador, mais valioso do que todos os
outros, por se tratar de um voto arrancado no ambiente em que era disputado
palmo a palmo, família por família, rua a rua, com uma mensagem de fé e
confiança.
A sua última e grande conquista para o ES foi no apagar das luzes
do governo J.K. que resultou na criação da Universidade Federal do Espírito
Santo. Juscelino não conseguia enviar a mensagem ao Congresso solicitando a
federalização da UFES e Jânio avisou que depois que assumisse o cargo não
assinaria alto algum. Foi uma correria! Dirceu levou a mensagem de Vitória para
J.K. assinar cinco dias antes de encerrar o seu mandato. E, no último dia, com
o Presidente reunido com o Ministério, Dirceu consegue furar o bloqueio quando
João Goulart, o vice-presidente, falava em nome do Ministério e, logo após
pediu a J.K. que assinasse o decreto.
Dali seguiu para a Imprensa Oficial para a sua publicação. Dez anos depois, a
Universidade, com aprovação da totalidade de seus membros, outorgou-lhe o
título “Doutor Honoris Causa.”
Mas o que lhe deu notoriedade nacional foi ler a Carta-Renúncia de
Jânio Quadros, depois de sete meses no exercício da Presidência, aonde chegara
com uma avalanche de votos – seis milhões – e com indiscutível popularidade. O
alto comando do PSD escolheu o paramentar capixaba para dar conhecimento ao
Congresso. Destemido como era, sabia que ao ler aquele documento poderia
resultar em problemas gravíssimos diante da popularidade de Jânio Quadros. Lida
a Carta por Dirceu, o deputado Ranieri Mazzili foi chamado para ocupar a
Presidência da República
Depois de três mandatos consecutivos como deputado federal, se
prepara para o último desafio, o Senado da República, concorrendo pelo MDB,
contra a máquina eleitoral da Arena montada no Estado. Visita cidade por
cidade, distrito por distrito. Eram comícios quase todos os dias e para
surpresa geral acaba por vencer o pleito eleitoral mais difícil de sua vida e
no Senado iria abrir mais uma frente de lutas, contra os empréstimos externos
para Prefeituras, Autarquias e Companhias Estaduais. Sozinho deixava a pauta do
Senado paralisada por meses, se havia pedido de empréstimos. O experimentado
parlamentar, que conhecia como poucos o Regime Interno da Casa, com pedidos de
verificação de quorum, obstruía e batia firme no presidente da Casa, Jarbas
Passarinho.
Como Senador, pronunciou mais de mil e cem discursos, era assíduo
e prestou relevantes serviços a nação, a ponto do ministro da Fazenda Ernani
Galveas agradecer em seu nome, do ministro Delfim Neto e do presidente do Banco
do Brasil com as seguintes palavras: “O Senhor está desempenhando um papel
importante e patriótico, que a bancada do governo deveria estar fazendo (...).
Não sabemos o que seria do Brasil se estes empréstimos fossem aprovados”. Foi o
único elemento do MDB, por indicação do presidente da República, para cursar a
Escola Superior de Guerra, tendo viajado por toda a Europa em estudos.
Foi considerado pela Imprensa como
o Senador mais atuante em 1980 e eleito “O Senador do Ano” em 1981,
especialmente pela sua "luta de um homem só" contra a inflação, a
corrupção, as mordomias e o desperdício de dinheiro público, sendo verdadeiro
paladino da instituição parlamentar. Reeleger o grande senador capixaba foi um
ato de justiça do povo do Espírito Santo, conforme descrito em sua Biografia no
site da Câmara Municipal de Muqui, que se encerra com o seguinte frase: “Obrigado,
Dr. Dirceu Cardoso! Muqui se sente honrada por tê-lo recebido.”
Tinha tudo para ser o governador do Estado, mas a idade já pesava
e a juventude de Gerson Camata era a opção do eleitorado mais jovem, e quando
este foi a Brasília com seu secretariado para agradecer as obras que João
Figueiredo fez no Estado, o presidente disse: “Está aqui presente em
contrapartida, um homem que lutou para pôr um fim à avalanche de empréstimos
solicitados à presidência e encaminhados ao Senado para aprovação. O Brasil não
deve mais porque este Senador combateu desesperadamente está série ameaça ao
nosso Governo. Está aqui o ex-Senador Dirceu Cardoso, o herói desse
procedimento patriótico e cívico, o nosso sincero agradecimento.”
Eleito sucessor de Figueiredo, Tancredo Neves o convidou para ser
Chefe de sua Casa Civil, afirmando ao Governador do Espírito Santo que não o
cederia para o Estado. Tancredo disse: “Quero que ele me acompanhe no meu
gabinete de Presidente para me ajudar a combater a corrupção no Brasil. Ele
forma um pequeno grupo de homens em que tenho absoluta confiança”. Só não
cumpriu essa missão porque Tancredo morreu e o Presidente José Sarney, de quem
também era amigo, não o aproveitou.
Depois de cumprir seu mandato de Senador, voltou para Muqui e o
Governador Gerson Camata o convidou para ser Secretário de Segurança Pública, e
depois foi diretor do Porto de Vitória. Foi o último cargo público que ocupou.
Com o falecimento da esposa, ele fixa residência definitivamente na sua terra
adotiva, Muqui. Neste meio século de atividades políticas, raramente usava um
carro oficial, não empregou a família e terminou seus dias com uma modesta
aposentadoria.
Mas a vida de Dirceu não foi só de triunfos e glórias; nos embates
ferozes na Assembleia Legislativa e na violenta política capixaba de então, fez
vários inimigos, inclusive na sua cidade adotiva. O melhor colégio do Estado
acabou sendo demolido por seus inimigos políticos. Os cinco pavilhões de dois
andares, hoje é apenas recordação num quadro afixado na parede de sua casa e na
lembrança nas centenas e centenas de alunos que todos os anos festejam o
Colégio de Muqui, na festa dos ex-estudantes.
Na sua última entrevista a Rogério Medeiros, intitulada a “Lenda
Viva”, na revista Século, o Estado do ES em Revista, de março de 2001, ele
declara: “Estou esperando a morte como compensação pela vida, mas ela está
demorando, já deveria ter chegado. Além do mais, eu quero ir dormir com minha
querida companheira, enterrada no cemitério daqui”. Todos os domingos ele
vestia o melhor terno e levava um buquê de flores para depositar no túmulo de
Lizete. Disse ainda que apesar dos feitos, lamentava ter trocado a vida de
educador pela vida política.
Faleceu aos 90 anos de idade, em 6 de maio de 2003, na cidade do
Rio de Janeiro, mas foi enterrado em Muqui, onde iniciara sua carreira
política. O Governado Paulo Hartung veio de Vitória para o seu sepultamento que
foi acompanhado por várias “Folias de Reis”, uma de suas paixões. A
Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo deu seu nome ao plenário,
hoje Plenário Dirceu Cardoso, assim como Miracema, sua cidade natal, em 2005,
ao prédio da Câmara Municipal, cujos móveis maciços, no local até os dias de
hoje, foram entalhados por seu pai, Melchíades, além de jornalista e escritor,
um excelente carpinteiro.
NOTA: TRANSCRITO DO JORNAL DOIS ESTADOS, DE 30 DE AGOSTO DE 2005, COM ALGUNS ACRÉSCIMOS.