Diante de mim estava o dilema: -
revide ou covardia. Tudo começou na humilhação de Maurinho. Por que eu dei com
a chuteira na cara de alguém.
O episódio do ministro Sebes é uma
das minhas fixações. Não consigo esquecê-lo.Vou contar como as coisas realmente
se passaram.
Eis a verdade: acabara o jogo Brasil
x Hungria, com a derrota brasileira por 4 x 2. Farei, mais tarde, uma
meticulosa reconstituição da partida, que tanto apaixonou o Brasil. No momento,
o que interessa é o incidente da chuteira. Ninguém podia estar satisfeito,
evidentemente. O jogador brasileiro não encara a derrota como uma contingência
normal do esporte, mas como uma tragédia. Especialmente nas partidas
internacionais e fora do Brasil. Quando pisa o chão estrangeiro ele pensa,
acima de tudo, nos patrícios que ficaram para trás. Digamos que vá competir na
Europa. Pois, muito bem: apesar do oceano, que o separa de sua terra, ele sente,
e sofre, e vibra em função do público ausente e longínquo. Assim foi na Suíça,
quando enfrentamos a Hungria. Cada elemento do escrete tinha a ilusão de que
estava sendo olhado por 55 ou 60 milhão de patrícios. E quando, por fatores
vários, perderam para os húngaros, a sua tristeza vinha menos da derrota em si
mesma do que do julgamento da distante torcida brasileira.
Pois bem: apesar do dramatismo
exagerado da situação, os nossos jogadores tiveram um mérito incontestável,
qual seja o de fazer um esforço para superar a amargura do revés. O gesto de
Maurinho foi típico.
Que fez Maurinho? Como eu ia dizendo:
terminada a partida. Do seu rosto escorriam, misturados, o suor e a lágrima da
derrota. Ele superou, porém, a sua tristeza. Viu um adversário próximo, que era
o Czibor, que lhe estendera a mão. Perto, à espera dos jogadores, estava eu,
assistindo à cena. Maurinho quer retribuir: estende a sua mão. E Czibor recolhe
a mão. E, lá, ficou no ar e desprezada, a mão brasileira de Maurinho.
Falei da mão de Maurinho, que o outro
se recusou a apertar. Mas é preciso não esquecer a cara de Czibor, na ocasião. A
cara! Um insulto, um nome feio, um palavrão, no rijo e incisivo idioma de
Camões, não seria mais grave, nem mais aviltante, que o ricto (riso forçado) do
jogador húngaro para o nosso. Compreendo a revolta deste. Eu já disse que o
craque brasileiro, no exterior, valoriza e dramatiza, ao máximo, a sua
responsabilidade nacional. Atrevo-me a dizer, com exagero: ele se supõe, em
campo, a própria pátria em calções e chuteiras. E o que teria dilacerado
Maurinho, diante de Czibor, foi, acima de tudo, o brio ferido de brasileiro. Eis
o que parecia exprimir o esgar (jeito do rosto) do adversário: nojo, desprezo,
e, numa palavra, um achincalhe total.
E, então, já que lhe recusavam a
cordialidade, já que lhe repeliam a efusão brasileira, Maurinho mudou de
atitude. Eu só vi Czibor torcer-se como numa cólica. Maurinho vibrava-lhe um
soco no estômago.
O que Czibor fez, em seguida, foi o
que o carioca chama, na sua alegre gíria, de “cinema”. Simulou um nocaute
espetacular. Dir-se-ia que o brasileiro lhe infligira um soco de fender
edifícios. E, na verdade, a pancada de Maurinho fora mais simbólica do que
outra coisa.
Vi que o incidente poderia
transformar-se num conflito de maiores proporções. Chamo:
- Vem cá, Maurinho!
Ele veio. Puxo-o para fora de campo.
No chão, Czibor continuava a dramatizar. Vários patrícios seus o acudiam,
esbravejantes. Czibor gemia. Pensei, ao entrar no túnel, que tudo tinha
começado e acabado ali. Mas estava enganadíssimo. O nocaute simulado do jogador
húngaro exasperara os nossos adversários.
Agora um parêntese. Durante a
partida, acontecera o seguinte: com chuteiras inadequadas, que não lhe
ofereciam nenhuma estabilidade, Didi vivia caindo em campo. Ele escorregava,
derrapava no campo molhado, como se o fizesse numa pista de gelo. Houve um momento
em que ele e nós nos desesperamos. Deu-se um jeito de mudar as chuteiras para
que Didi não patinasse tanto. Fiquei assistindo ao resto do jogo assim: segurando
uma das chuteiras imprestáveis. Pois bem: passa-se o tempo e acaba o jogo.
Quando Czibor estendeu a mão para Maurinho e, em seguida, a recolheu, eu
estava, ainda, do mesmo jeito, isto é, com a chuteira na mão. Mas como ia
dizendo: entro com Maurinho no túnel, certo de que estava tudo sanado.
O nosso vestiário era à esquerda, o
dos húngaros à direita. E, súbito, vejo que um grupo adversário parte para cima
de Maurinho. Era óbvio que se queria vingar o falso nocaute de Czibor. Trato de
fazer a cobertura do meu companheiro. Foi então que se criou para mim o dilema
de revide ou covardia. Mas vejamos como ocorreu o episódio da chuteira.
O sujeito que, num esgar de nojo, ou
de ódio, cospe em alguém ou em alguma coisa, está na verdade tocando um limite
extremo. Pergunto: existe alguma coisa de mais atroz, de mais nefando, do que
um jato de saliva?
Foi o que fizeram nossos adversários.
Eu me interpus entre eles e Maurinho. E
eles ficaram, a poucos passos de mim, agrupados, num alarido (falatório)
infernal. Mas o sujeito que pragueja num idioma que não é o nosso fica mais
cômico do que ofensivo. Mas eles se fizeram entender, em seguida. Num coro
objeto, faziam a pergunta?
- Brésil?
E cuspiam, todos, em sincronismo.
Conseguiram repetir:
- Brésil?
Nova cusparada. Eu falei no momento
em que me vi diante do dilema da covardia ou revide. Foi este o momento,
exatamente este, o momento. Contei que carregava uma chuteira, como se esta
fosse algo de precioso como um sapato de Cinderela. Fiz, então, o que faria, no
meu lugar, cada um dos 55 ou 60 milhões de brasileiros: arremessei a chuteira
em cima dos cretinos ululantes. Foi chuteira e podia ter sido qualquer outra
coisa mais ou menos contundente.
Apagaram a luz, em seguida. Mas
antes, eu tive a imensa, a tremenda satisfação de ver que a chuteira atingira a
cara de alguém. De quem? Não identifiquei, de momento, a pessoa. Logo, alguém
apagou a luz e houve, no escuro, o diabo. Inclusive, Pinheiro levou, na cabeça,
uma garrafada. Pouco depois, já havia quem dissesse horrores de mim. Afirmava-se
que eu fizera aquilo por um motivo inferior: a “queimação” da derrota.
Posteriormente, vim a saber que a
vítima teria sido o ministro Sebes. Foi ministro e podia ter sido mais,
presidente, rajá, rei ou quem fosse. Digo, aqui, com a maior naturalidade: na
minha frente, ninguém ofende o Brasil. E foi esta uma das coisas boas, nobres,
que eu fiz na vida e da qual não me arrependerei, nem no céu, nem na terra.
NOTA: DEPOIMENTO DE ZEZÉ MOREIRA AO
JORNALISTA NELSON RODRIGUES, PUBLICADO NA REVISTA MANCHETE ESPORTIVA EM 1957.
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