Nota: reportagem da revista Placar de 30/08/1985, assinada por Armando
Calvano e fotos de Rodolpho Machado
Um louco futebol: em campo, Brigite
Bardot, carneiros, galos de briga...
Menos de um mês depois de disputarem
a final da Taça Ouro pelo Bangu, na semana passada os atacantes Pingo e Lulinha
sentiram o chão sumir sob seus pés. O patrono do vice-campeão nacional, Castor
de Andrade, informou que o Campo Grande, de quem o Bangu emprestara os dois
jogadores no início da temporada, estava pedindo 600 milhões de cruzeiros por
seus passes em definitivo. Castor não estava disposto a desembolsar tanto e,
assim, eles teriam de voltar a seu clube, que disputa a Segunda Divisão do Rio
de Janeiro.
Pingo não se conformou, Lulinha
chegou a dizer que nesse caso preferia ficar sem clube. Voltar à Segundona,
nunca! Ao contrário do que acontece em sua similar paulista, que ocupa o
terceiro lugar em volume de arrecadações no país, a divisão de acesso fluminense
representa para os craques mais ambiciosos uma espécie de calabouço, onde estão
condenados ao exílio perpétuo dos grandes espetáculos do futebol que costumam
acontecer perto dali, no Maracanã – palco que todos sonham em pisar. Povoado
por dirigentes doidamente apaixonados por seus times, jogadores que se cruzam
em início e fim de carreira, repleto de cenas inimagináveis numa estrutura que
apesar de tudo preserva o profissionalismo. O campeonato representa por tudo
isso um universo rico e fascinante. Uma espécie de folclore vivo e em
permanente criação.
Sentado num apodrecido banco de
madeira no vestiário, o atacante Zé Neto reclamava com o massagista: “Manfrini,
cadê a toalha quente? Tá na hora de fazer o tratamento no joelho”. Manfrini
pediu paciência: “Espera um pouco que a água está esquentando lá fora”.
Junto à entrada do vestiário, quatro
tijolos sustentavam uma velha chaleira com água até a boca. No meio, ardiam
alguns gravetos. Em 15 minutos, a água começou a borbulhar. Estava no ponto para
umedecer a toalha desbotada. Mas logo o tarimbado massagista – dez anos de
dedicação ao Rio Branco, de Campos, a terra do petróleo e da cana-de-açúcar no
interior fluminense – viu-se às voltas com outro problema insólito: “A bola,
cadê a bola?”, pediam os jogadores, já de roupa trocada, no centro do campo do
Ypiranga.
“É mesmo, a bola...” deu-se conta
Manfrini. Abriu o armário, pegou uma velha bola – mais desbotada que a toalha
sobre o joelho de Zé Neto – e deu início a um sofrido movimento de vaivém na
bomba de pneu de bicicleta para poder enchê-la a gosto do time. Terminado o
cansativo trabalho, quicou-a três vezes antes de lançá-la por cima do alambrado
para os ansiosos jogadores.
SAUDADE DAS MORDOMIAS
É assim a Segunda Divisão
Profissional do Rio de Janeiro. Já indo para a terceira rodada do segundo
turno, a maioria dos clubes faz o diabo para sobreviver, com média de 200
torcedores, rendas máximas de 1,5 milhão de cruzeiros e três salários mínimos
mensais para os maiores craques. O primo mais pobre desta família é, sem
dúvida, o Rio Branco de Campos.
Em sua bela casa próxima ao campo do
Goytacaz, outro clube da cidade, o presidente de honra e tesoureiro do Rio
Branco, Clóvis Arenari, tenda explicar a situação: “Como vivemos? Isso é muito
simples, meu filho: nosso coração é rosa e preto (as cores do clube). Faltou dinheiro,
eu, o presidente do clube, e mais uns três amigos, metemos a mão no bolso”, diz
ele enquanto afaga a cabeça de um galo de briga, um dos 50 que cria nos fundos
da casa. Mas o clube diversifica sua política econômica. Há um mês, a direção
colocou à venda 7.000 títulos do Rio Branco e garante que 6.500 foram vendidos.
O sucesso fulminante da promoção está intimamente ligado à surpreendente
campanha do time, que ocupa a segunda colocação no campeonato.
Além dos artilheiros Cacholinha e
Arroz, um jogador das Arábias é considerado o maior responsável por essa
façanha: o zagueiro William, que começou a sua carreira no Fluminense e, de
1981 a 84, faturou cerca de 2.000 dólares por mês no Catar. Hoje, no Rio
Branco, Willim lamenta que os árabes tivessem proibido os estrangeiros de atuar
na região: ganha, o câmbio atual, 70 dólares por mês (menos de 500 cruzeiros)
no clube campista. “Vivo de economias, meu irmão. Naquela mordomia lá dos
árabes eu não gastava nada e deu para juntar um dinheirinho. Ainda bem, né?”
De Campos a Cabo Frio são mais de 2
horas de estrada. Lá, à beira da praia e
em meio a turistas que vêm do Brasil e do mundo, atraídos pelas areias
alvíssimas e o mar transparente da região, fica a Associação Atlética
Cabofriense, que divide a segunda colocação com o Rio Branco. E a situação se
torna curiosa na medida em que a Cabofriense é o primo rico da competição.
O prefeito Alair Correia, do PMDB,
certo de que no futebol encontraria uma fonte de divisas para a região, resolvei
investir forte na Cabofriense. Reuniu um grupo de comerciantes da região e,
assim, obteve uma receita mensal de 50 milhões de cruzeiros. Com isso, o
supervisor Carlos Alberto Galvão, o “Katuca”, que já trabalhou em vários clubes
grandes do Rio, pôde sair à cata de reforços. Transformou a Cabofriense numa
espécie de filial do Bangu, que, por intermédio de Castor de Andrade, cedeu
sete jogadores, entre eles Totonho e Marcelinho, que chegaram a ser titulares
do time de Moça Bonita. Para completar a equipe, três veteranos: Paulo Verdum
(ex-Botafogo), Sérgio Lima (que jogou no América do Rio, no Guarani de Campinas
e no México) e Luís Paulo, (ponta-esquerda, 35 anos, que quando jogava no
Flamengo, mereceu exagerados elogios de Pelé).
UM TRAMPOLIM
De Cabo Frio, ficou na equipe apenas
o centroavante Val, 18 anos, considerado a maior revelação da cidade em todos
os tempos. O técnico Hamilton está satisfeito. Estudioso do futebol, também com
passagem pelo futebol árabe após ter-se diplomado em Educação Física, ele
considera inviável a estrutura dos clubes da Segunda Divisão.
“O certo seria os times se
preocuparem em revelar novos valores em vez de aproveitar os jogadores mais
veteranos. Veja bem: não estou contra nenhum deles que joga aqui na
Cabofriense. Eu gostaria somente que o futebol brasileiro fosse olhado de uma
outra maneira, não tão imediatista. Os clubes da Segunda Divisão poderiam ser o
trampolim para os jovens, ou seja, aqueles que estouram idade de juniores no
Vasco, Flamengo, Fluminense, e não são aproveitados.”
No alta da serra, em Nova Friburgo, a
137 km do Rio, o técnico da Friburguense, Paulo Massa, companheiro de faculdade
de Hamilton, pensa da mesma forma. E é apoiado pelo presidente Felippe
Deccache, um industrial bem-sucedido da região, que não tem o menor interesse
de transformar agora a Friburguense num grande clube.
“Vou contar uma verdade para você:
nós nem íamos disputar esse campeonato de 1985. Só entramos mesmo porque o CND baixou
aquela norma de que quem não jogasse seria rebaixado para a Terceira Divisão. Montei
nosso time em um mês”, disse Deccache.
Impávido, segue à frente de todos o
Campo Grande, líder absoluto da Segunda Divisão, que, se não consegue seduzir
de volta seus craques Lulinha e Pingo, já tem quase a certeza que voltará a
jogar, no ano que vem, contra os grandes do futebol carioca. Apesar das baixas
arrecadações, o clube consegue se manter em boa situação graças à sua alta
arrecadação social de clube de porte na zona rural carioca.
O Serrano, de Petrópolis, e o
Mesquita, da Baixada Fluminense, também vivem, aos trancos e barrancos, da receita
de seu pequeno quadro social. Ruim mesmo está a situação para São Cristóvão e
Madureira, mal colocados na tabela de classificação. Os dois, além de terem perdido quase todos os
associados nos últimos anos, mal conseguem pagar as despesas do time. Como o
Nacional de Caxias, cujos jogadores ganham mensalmente o equivalente a um
salário mínimo. O Nacional é o último colocado. Até agora, só conseguiu dois
pontos.
Mas especialmente triste é a situação
do São Cristóvão. Clube de tradição no futebol carioca, com um título estadual
conquistado na década de 30, hoje corre o sério risco de cair até para a
Terceira Divisão, tal a fragilidade de sua equipe. O velho estádio de Figueira
de Melo está praticamente abandonado e já houve jogos neste da Segunda Divisão
em que apenas 20 torcedores foram ver. Para se ter uma ideia, seu jogador mais
experiente – Albéris – ganha 370.000 cruzeiros por mês, pouco mais que o
salário mínimo.
Sumiram até os quatro carneiros que
passavam o dia a comer a grama do campo. Ninguém sabe dizer nas panelas de quem
foram colocados. Sumiram, como pode acontecer com o São Cristóvão qualquer dia
desses.
Assim vai a Segundona, fazendo o que
pode para não desaparecer e, se possível, chamar a atenção. Em setembro, a
Cabofriense vai estrear uma nova camisa, com um desenho da Brigitte Bardot no
lado direito do peito. É uma homenagem à BB, que tornou conhecida
internacionalmente a vizinha Búzios, distrito de Cabo Frio, ao passar, 20 anos
atrás, umas férias ali com seu namorado argelino, criado no Brasil, Bob Zagury.
Aliás, onde foi parar esse também?
Minhas considerações:
O Campeonato Estadual da Segunda Divisão de 1985 foi
disputado pelas seguintes agremiações:
Associação Atlética Cabofriense, de Cabo Frio
Campo Grande Atlético Clube, do Rio de Janeiro
Friburguense Atlético Clube, de Nova Friburgo
Madureira Esporte Clube, do Rio de Janeiro
Mesquita Futebol Clube, de Nova Iguaçu
Nacional Foot-Ball Club, de Duque de Caxias
Clube Esportivo Rio Branco, de Campos
Royal Sport Club,
de Barra do Piraí
Rubro Atlético Clube, de Araruama
São Cristovão de Futebol e Regatas, do Rio de Janeiro
Serrano Futebol Clube, de Petrópolis
Esporte Clube Siderantim, de Barra Mansa
Foram promovidos ao final do campeonato o Campo Grande
(campeão) e Mesquita (vice-campeão) para os lugares dos rebaixados Bonsucesso e
Volta Redonda.