OBRIGADO,
MICAELA!
Junho de 1948, Marselhesa, Miracema.
Dia ainda nascendo, manhã fria e escura. Pulávamos da cama
com a sensação do calor das cobertas, passávamos rapidamente no tanque para
molhar os rostos, depois apanhávamos as canecas na cozinha e corríamos para o
curral. Nele, já estava o JACINTO, negro forte e pronto para o trabalho da
ordenha, início de uma jornada cotidiana árdua e penosa, que só terminava
depois do pôr do sol. JACINTO era o retireiro, o carreiro (condutor do carro de
boi), o lavrador no plantio do arroz (cultura principal da Fazenda da minha avó
Lafite), além de ser uma espécie de líder dos colonos que ali viviam.
Após afastar o bezerro que mamava nas tetas da mãe e
amarrá-lo nos pés da vaca, JACINTO iniciava a ordenha, prendendo o balde entre
suas pernas musculosas, que mais pareciam dois troncos de uma frondosa árvore,
vestidas com uma calça que as cobria até as canelas. Cheio o balde, JACINTO
estendia seus grossos braços para alcançar os canecos que os lançavam suspensos
em nossas mãos, prontos a receber o líquido branco, ansiosamente desejado pelos
apetites insaciáveis daqueles garotos despreocupados com qualquer consequência
alimentar.
Bebíamos sofregamente aquele alimento in natura, tal qual
fazia o bezerro não desmamado.
Marselhesa é uma pequena propriedade rural. Faz divisa com o
Moura e fica a quatro quilômetros do Hospital de Miracema, na Rua do Café.
Junho de 2008. Madrid, Espanha.
Brasil x Cuba. Disputa da última vaga do basquete feminino
para a Olimpíada de Pequim. Minuto final do quarto tempo. Jogo empatado.
Micaela com a bola e num jamp converte e marca dois pontos para o Brasil, que
passa à frente do placar. Falta contra Cuba. Dois lances livres convertidos por
Micaela. Brasil vence e está classificado para os Jogos Olímpicos de Pequim.
Micaela é a cestinha do jogo.
Ao ver Micaela na quadra, com seus passos largos e velozes,
tem-se a impressão de estar ela impulsionada por um vento soprado lá da África,
como se fosse uma gazela galopando pelas savanas buscando alcançar o seu
objetivo.
Entrelaço as épocas tão distantes e vejo naquela determinação
da jogadora a obstinação do sentimento libertário do escravo que ultrapassa
todos os obstáculos que se lhe antepõem. Lembro-me, então, no negro JACINTO,
bisavô de MICAELA, com suas pernas frondosas e braços fortes, dobrando o barro
no plantio de arroz. Recordo-me do Antônio e da Olga, avós de MICAELA, formando
o belo casal que desfrutou o amor sereno da roça e gerou os filhos José
Geraldo, Francisca e Antônio Carlos, o Carlinhos, pai de MICAELA.
Com certeza, JACINTO, ANTÔNIO E OLGA estão, lá no céu,
alegres, sorrindo com as cestas de MICAELA, assim como ficavam alegres nas
colheitas bem-sucedidas do arroz e do feijão plantavam e lhes permitiam
sustentar suas famílias.
As cestas de Micaela também alegram o Brasil e enchem de
orgulho os miracemenses.
A cada fundamento e a cada cesta de Micaela, assistindo-a
pela televisão, vibrava e me sentia cúmplice das jogadas com o grito saído do
fundo da alma.
OBRIGADO, MICAELA!
Rio de Janeiro, 16 de junho de 2008.
José Geraldo Antônio
Nota: transcrito do
jornal Liberdade de Expressão, edição nº 104, de julho/2008.
Nenhum comentário:
Postar um comentário