terça-feira, 11 de junho de 2019

OBRIGADO, MICAELA! - POR JOSÉ GERALDO ANTÔNIO



OBRIGADO, MICAELA!

Junho de 1948, Marselhesa, Miracema.

Dia ainda nascendo, manhã fria e escura. Pulávamos da cama com a sensação do calor das cobertas, passávamos rapidamente no tanque para molhar os rostos, depois apanhávamos as canecas na cozinha e corríamos para o curral. Nele, já estava o JACINTO, negro forte e pronto para o trabalho da ordenha, início de uma jornada cotidiana árdua e penosa, que só terminava depois do pôr do sol. JACINTO era o retireiro, o carreiro (condutor do carro de boi), o lavrador no plantio do arroz (cultura principal da Fazenda da minha avó Lafite), além de ser uma espécie de líder dos colonos que ali viviam.

Após afastar o bezerro que mamava nas tetas da mãe e amarrá-lo nos pés da vaca, JACINTO iniciava a ordenha, prendendo o balde entre suas pernas musculosas, que mais pareciam dois troncos de uma frondosa árvore, vestidas com uma calça que as cobria até as canelas. Cheio o balde, JACINTO estendia seus grossos braços para alcançar os canecos que os lançavam suspensos em nossas mãos, prontos a receber o líquido branco, ansiosamente desejado pelos apetites insaciáveis daqueles garotos despreocupados com qualquer consequência alimentar.

Bebíamos sofregamente aquele alimento in natura, tal qual fazia o bezerro não desmamado.

Marselhesa é uma pequena propriedade rural. Faz divisa com o Moura e fica a quatro quilômetros do Hospital de Miracema, na Rua do Café.

Junho de 2008. Madrid, Espanha.

Brasil x Cuba. Disputa da última vaga do basquete feminino para a Olimpíada de Pequim. Minuto final do quarto tempo. Jogo empatado. Micaela com a bola e num jamp converte e marca dois pontos para o Brasil, que passa à frente do placar. Falta contra Cuba. Dois lances livres convertidos por Micaela. Brasil vence e está classificado para os Jogos Olímpicos de Pequim. Micaela é a cestinha do jogo.

Ao ver Micaela na quadra, com seus passos largos e velozes, tem-se a impressão de estar ela impulsionada por um vento soprado lá da África, como se fosse uma gazela galopando pelas savanas buscando alcançar o seu objetivo.

Entrelaço as épocas tão distantes e vejo naquela determinação da jogadora a obstinação do sentimento libertário do escravo que ultrapassa todos os obstáculos que se lhe antepõem. Lembro-me, então, no negro JACINTO, bisavô de MICAELA, com suas pernas frondosas e braços fortes, dobrando o barro no plantio de arroz. Recordo-me do Antônio e da Olga, avós de MICAELA, formando o belo casal que desfrutou o amor sereno da roça e gerou os filhos José Geraldo, Francisca e Antônio Carlos, o Carlinhos, pai de MICAELA.

Com certeza, JACINTO, ANTÔNIO E OLGA estão, lá no céu, alegres, sorrindo com as cestas de MICAELA, assim como ficavam alegres nas colheitas bem-sucedidas do arroz e do feijão plantavam e lhes permitiam sustentar suas famílias.

As cestas de Micaela também alegram o Brasil e enchem de orgulho os miracemenses.

A cada fundamento e a cada cesta de Micaela, assistindo-a pela televisão, vibrava e me sentia cúmplice das jogadas com o grito saído do fundo da alma.

OBRIGADO, MICAELA!

Rio de Janeiro, 16 de junho de 2008.
José Geraldo Antônio

Nota: transcrito do jornal Liberdade de Expressão, edição nº 104, de julho/2008.







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