Texto de 2001 de autoria de
Rogério Medeiros.
Sugerido por Dr. Maurício Monteiro.
Dirceu
Cardoso nasceu em Miracema em 4 de janeiro de 1913, filho do jornalista e
político Melchíades Cardoso e Adalgisa Cardoso Leite. Melchíades foi Prefeito
de Miracema por dois mandatos. Período em que Miracema e Pádua eram iluminadas
pelos famosos lampiões belgas. Formou-se em direito pela Universidade Federal
Fluminense, especializando-se em direito criminal. Retornando a Miracema
lecionava no Colégio Miracemense. Nesta época, no internato do Colégio de Pádua
havia uma grande quantidade de alunos oriundos da cidade de Muqui (ES), grande
produtora de café. O Professor Lavaquial Biosca recebeu na ocasião um pedido da
cidade capixaba para indicar um professor que iria dirigir o recém-criado
Ginásio em Muqui. Lavaquial, conhecendo a capacidade do jovem advogado e
professor Dirceu Cardoso, lhe fez o convite, prontamente atendido. Foi o seu
primeiro desafio. Em pouco tempo transformou o Colégio de Muqui na maior e
melhor escola do Sul do Espírito Santo. Líder inconteste e iniciando a sua
extraordinária carreira política, foi eleito prefeito de Muqui, Deputado
Estadual por duas vezes, Deputado Federal por mais dois mandatos e Senador da
República. Foi ele quem leu na tribuna do Senado a carta de renúncia do
presidente Jânio Quadros. No Espírito Santo foi ainda Secretário de Educação e
Secretário de Segurança Pública. Faleceu aos 90 anos de idade, em 6 de maio de 2003, na cidade do Rio de Janeiro, mas foi
enterrado em Muqui, onde iniciara sua carreira política.
Como
os grandes felinos da Mata Atlântica, que chegam às margens dos rios e das
lagoas na velhice à espera da morte, a figura mais lendária da política
capixaba refugiou-se numa pequena cidade ao sul de Vitória com o mesmo
propósito: “Estou esperando a morte aqui como compensação pela vida. Mas ela
está demorando, já deveria ter chegado. O corpo fraqueja, a dor chega. Além do
mais, eu quero ir dormir com a minha querida companheira, enterrada no
cemitério daqui.”
Quem almeja a morte com tanta ansiedade é a própria figura da decência e da
honestidade do político capixaba: o ex-deputado e ex-senador Dirceu Cardoso.
Aos 88 anos de idade, ele voltou para Muqui, onde iniciou a sua vida pública,
com este propósito, mas relativamente esquecido na memória do Estado e até na
própria localidade que escolheu para homenagear com o seu cadáver.
Mas é difícil acreditar que o corpanzil que ele ainda ostenta hoje esteja já na
hora de ir para o cemitério. O seu corpo com os devidos descontos do tempo é
quase o mesmo que botou muita gente para correr nos seus cinquenta e tantos
anos de vida pública. Bravo como uma onça, não foi, aliás, sem sentido que o
repórter usou a imagem dos felinos para compará-lo. Dr. Dirceu, como sempre foi
chamado na intimidade, resolveu muitos casos no muque.
Sua trajetória política é povoada de cenas de valentia. Quando líder do governo
na Assembleia Legislativa, nos anos 50, ele acabou com a obstrução da oposição,
feita por tenazes deputados, entre eles um célebre orador, Eurico Rezende,
pegando o projeto das mãos dos adversários, rasgando-o como um brutamonte, pois
era volumoso, lançando-o pela janela do plenário, numa época em que as janelas
eram abertas, pois não havia ainda ar-refrigerado na Assembleia.
O forte do Dr. Dirceu sempre foi a honestidade e o seu zelo por ela. Construiu
uma história neste ramo. Se em favor dela fosse necessário acabar com alguém,
ele não pestanejava, fez inimigos às pencas. Seu lema era: “Para pôr fim a um
corrupto, era necessário acabar com ele”. De temas como este, ele construiu sua
vida pública, mas dando belos exemplos de honestidade. Tanto que vive hoje da
renda de uma pequena propriedade agrícola, que lhe oferece, nos seus melhores
anos, uma minguada safra de 200 sacos de café, que complementas sua aposentadoria.
Mora numa antiga casa no centro de Muqui (ES), herança da sua esposa, na
companhia de um cozinheiro e um acompanhante, que o vigia como um cão de
guarda. Dr. Dirceu é pai de quatro filhas, mas todas elas moram fora do Estado.
Raramente o visitam. A que aparece é Liana, professora universitária, residente
no Rio de Janeiro. Quando ela chega, ele vive doces momentos de carinho:
Paizinho pra cá, Paizinho pra lá; A velha carranca se desmancha diante das
manifestações de afeto da filha.
Mas a maior parte do tempo ele está sozinho, agarrado a uma leitura no porão da
casa, onde conta com uma velha biblioteca e uma centenária cadeira, que faz
parte do rol das suas preferências na casa. Mas todos os dias pela manhã, com
uma pontualidade britânica, sai de casa para ir a agencia do Banco do Brasil
conferir sua conta. Veste-se com o mesmo apuro de quando se dirigia ao
Congresso Nacional. Coloca um velho terno de linho. Única mudança no traje está
no chapéu que foi obrigado a usar para proteger sua vista deficiente.
À tardinha ele dá uma volta inteira no quarteirão da sua casa. Aos domingos,
ele veste com o melhor traje, munido de um buquê de flores, visita o túmulo da
sua mulher. A visita ao cemitério ocorre invariavelmente muito cedo. Costuma
sair de casa as 5h 30 da manhã. No mês passado, protagonizou, por causa desta
sua pontualidade, uma cena de alto risco: não tendo achado a chave do cadeado
do portão, resolveu pular o muro. A sorte é que os vizinhos viram e o socorreram.
Mas há quem diga em Muqui, com alguma ironia política, é claro, que o Dr.
Dirceu vai de madrugada ao cemitério para não ver a sepultura de seu principal
inimigo político, que, por obra do destino, foi enterrado próximo à sepultura
da sua mulher. A mágoa com o defunto vizinho é realmente grande, pois, como
prefeito da cidade, ele mandou derrubar os pavilhões que formavam o conjunto do
colégio do Dr. Dirceu. Foi inclusive, em seu tempo, anos 40/50, o maior
educandário do sul do Espírito Santo. O colégio chegou a ter 430 alunos
internos.
Arrependimento: ter trocado a vida de professor pela de político. Feitos que
notabilizaram sua carreira política, lembrados na hora da entrevista pelo
repórter, não foram, sequer, capazes de livrá-lo da angústia da renúncia do
educador. E olha que na política ele contabiliza feitos memoráveis. Em certo
momento, parou o Senado sozinho, impedindo que fossem votados inúmeros
empréstimos externos. Foi uma luta titânica, ainda por cima temerária, pois foi
feita em pleno regime militar. Dr. Dirceu foi senador de oposição pelo MDB.
Ao lembrar essa sua vitoriosa luta no Senado, o repórter mexeu com a sua
memória e ele foi buscar outras imagens guardadas de sua trajetória política.
Entre elas a de ter conseguido com o presidente Juscelino Kubitschek criar a
Universidade Federal do Espírito Santo. Foi o último ato que o presidente
assinou: “briguei até o fim para conseguir que o Espírito Santo também tivesse
a sua universidade pública.”
Ele também foi um grande orador. É célebre seu discurso, no salão nobre da
Assembleia Legislativa, na cerimônia de despedida de um colega deputado morto.
Diante de uma plateia silenciosa e de uma família entristecida, ele finalizou
sua fala dizendo: “e a política é assim, minha senhora (dirigindo-se à viúva),
quando devolve o político à família, é dentro de um caixão. Leve-o que é seu.”
Mas hoje ele acha que a política não é bem assim. Já há muita gente tirando
proveito dela. A honestidade que marcou a sua conduta não é mais tão primordial
para os políticos de hoje. Provavelmente o barro que fez Dirceu Cardoso não é
encontrado mais, escreveria, com certeza, um bom biógrafo. A grandeza do Dr.
Dirceu está em transcender o papel do político honesto. Ele foi, sobretudo, um
político que se lançou numa luta sem trégua pela moralidade pública, como o
festejou, em recente encontro (aliás, um dos raros políticos que ainda o
visita), o ex-deputado Roberto Valadão.
A trajetória política do Dr. Dirceu fez com que se acumulassem muitos ódios
contra ele. O episódio do colégio é um, assim como terem matado de inanição
financeira o seu jornalzinho, que, por quase 30 anos, editou, com o nome de
"Município", numa modestíssima gráfica. Era um semanário com o qual
incomodou gregos e troianos. Hoje os restos da antiga gráfica enferrujam no
fundo do seu terreno, corno uma lembrança cruel do seu combativo período de
jornalista.
O episódio do Colégio, bem como o do seu jornal, são duas lembranças terríveis.
Ele fala deles com o sentimento da mágoa. Não mais como um leão rugindo, como
foi a sua marca na carreira política. Seu único desejo, além da morte, é voltar
ao Senado para repovoar a mente dos lances que viveu lá. Mas cadê dinheiro para
a passagem? O político que tinha tudo à disposição nunca fez uso das
facilidades e muito menos acumulou para o fim de vida. É pobre.
Mas um pobre que vive em solidão com os seus pensamentos, sem ter praticamente
com quem conversar. Daria até para parafrasear, apesar da angustiante
comparação, um dos primeiros contos de Gabriel Garcia Marquez: Ninguém Escreve
ao Coronel. Não é sem razão que ele vive a rogar a chegada logo da morte, mas
observando alguns desejos seus. Por exemplo, não quer banda de música nos seus
funerais, mas sim uma Folia de Reis (belo folclore da região) acompanhando o
caixão.
Sua expectativa ainda para esta hora é que possa se comportar como um legitimo
cavalo árabe: que não baixa a cabeça e vai olhando para o céu.
Abaixo
descrevo alguns tópicos de sua Biografia encontrada no site da Câmara Municipal
de Muqui:
* Foram seus irmãos
Nadeje, Danilo, Liége, Evelyn, Brissac e Expedito. Gostava de jogar bola e
banhar-se no Ribeirão Santo Antônio e vendia goiabada pelas ruas para ajudar
seus pais. Cursou o primário no Ginásio Estadual Dr. Ferreira da Luz, o
secundário no Ginásio de Miracema.
* Formou-se aos 16 anos
e manifestou desejo de estudar Direito. Foi para Niterói onde cursou os 4 anos
de Universidade e aos 20 anos formou-se advogado. Sem dinheiro não pôde comprar
o terno para a formatura, o que não lhe permitiu participar das solenidades.
Voltando a Miracema, lecionou História Natural e Biologia no Ginásio de Miracema
nos idos de 1933.
* Ao iniciar-se a
Campanha Separatista (para separar Miracema de Pádua) já aos 20 anos tornou-se
uns dos principais oradores dos comícios em cada esquina e com outros oradores
formou um grupo chamado "Os Quatro Diabos", sendo um deles seu pai,
um proeminente jornalista, entre outras atividades. Em 1934, o Interventor do
Estado do Rio cedeu ao movimento e deu a Dirceu a incumbência de entregar uma
carta ao Almirante Ary Parreiras onde concordava com a separação de Miracema da
cidade de Pádua.
* Foi considerado pela
Imprensa como o Senador mais atuante em 1980 e eleito O Senador do Ano em 1981
especialmente pela sua "luta de um homem só" contra a inflação, a
corrupção, as mordomias e o desperdício de dinheiro público, sendo verdadeiro paladino
da instituição parlamentar. Reeleger o grande senador capixaba foi um ato de
justiça do povo do Espírito Santo.
* A idade já pesava e
não concorreu a Governador do Estado do Espírito Santo. Foi convidado por
Tancredo Neves para ser subchefe da Casa Civil, afirmando que não cederia Dr.
Dirceu ao Estado. Depois de cumprir seu mandato de Senador, foi Secretário de
Segurança Pública e Presidente do Porto de Vitória de 1985 a 1990. Voltou a
Muqui, sua terra adotiva, neste meio século de vida política, raramente usava
um carro oficial, não empregava familiares ou amigos e terminou seus dias em
Muqui praticamente sozinho com uma modesta aposentadoria.
* A Assembleia
Legislativa do Estado do Espírito Santo em Vitória deu seu nome ao plenário,
hoje Plenário Dirceu Cardoso, assim como Miracema, sua cidade natal, em 2005,
ao prédio da Câmara Municipal, cujos móveis maciços, no local até os dias de
hoje, foram entalhados por seu pai, Melchíades, além de jornalista e escritor,
um excelente carpinteiro.
Obrigado, Dr. Dirceu
Cardoso! Muqui se sente honrada por tê-lo recebido.