Eram tempos de ditadura militar. Um
oficial de alta patente adentrou o Bar Lagoa — tradicional restaurante alemão
da Zona Sul carioca — acompanhado de seu cão. Inábil, sentou-se à mesa do
garçom João Godoy, por quem foi prontamente convidado a se retirar. Esclareceu,
aos berros, que era coronel do Exército. Ouviu em resposta:
— O
senhor pode ser coronel, mas seu cachorro não é.
Retirou-se.
O oficial não foi o único cliente a acoelhar-se nos 34 anos em que Godoy — ou,
para os íntimos, Figueiredo — carregou copos de chope e pratos de kassler pelos
salões do Bar Lagoa. O falecido jornalista Tite de Lemos foi repreendido por
exagerar no café. A bailarina Nora Esteves, por antecipar-se à fila. E o
compositor Martinho da Vila, autor de “Mulheres”, por fazer o que faz de
melhor: cantar e batucar, em meio a mulheres.
Frequentador assíduo e secretário de Cultura do município do Rio em 1987 — ano
em que o Lagoa foi tombado de forma provisória —, o ator Antônio Pedro diz que
Godoy não inventou a carranca que define os funcionários da casa, “mas foi o
ícone, a vedete, o ator principal”. Ao saber que o garçom, aposentado há mais
de uma década, se aproximava do primeiro centenário, exclamou:
— Meu
Deus! Mau humor dá resultado!
Nascido em 1915 na pequena cidade de Miracema, ao Norte do estado, Godoy desceu
para a capital fluminense com 21 anos. Trabalhou como garçom na Churrascaria
Gaúcha, no Restaurante Salete, na quadra do Império Serrano e na Tribuna de
Honra do Vasco da Gama — onde diz ter servido Getúlio Vargas — até integrar-se
ao escrete do Lagoa, no fim dos anos 1960. A contratação se deu por intermédio
de um amigo, também garçom.
— Ele
estava indo embora e me apresentou à dona Hilde (senhora alemã que foi a
primeira proprietária). Cheguei de chapéu-panamá, e ela falou: “Garçom bonito’’
— conta, faceiro.
Acabou contratado.
Àquela época, a casa em estilo art déco, fundada em 1934 no longínquo bairro de
Ipanema, já desfrutava de relativa fama. Em primeiro lugar, pela serpentina de
50 metros embebida em gelo, por onde o chope passava (e ainda passa) antes de
ser servido. Em segundo, pelos sucessivos nomes que tivera até estabilizar-se
como Bar Lagoa: nascera Bar Berlim (alcunha que lhe valera um injusto
apedrejamento durante a Segunda Guerra Mundial), rebatizara-se Shangri-lá (em
homenagem a uma embarcação brasileira afundada no mesmo período) e, finalmente,
em 1944, por força do hábito, adaptou-se ao nome com que era chamado pela
clientela.
Mas havia ainda um terceiro e principal motivo que fazia o local ser tão
comentado à boca pequena: o folclórico mau humor de seus garçons. No livro “Bar
Lagoa: Memória do Rio antigo’’, o empresário Antonio Grillo, atual proprietário,
escreve que “com um certo ar de superioridade, os garçons pareciam os donos da
casa, mandavam, desmandavam e resolviam os problemas" — o que gerou, por
anos, a falsa suposição de que eram sócios do estabelecimento. Lembra ainda que
seu falecido irmão Daniel — ex-garçom que foi promovido à gerente e,
finalmente, a marido de Hilde Müller —, “sem pressa alguma, preparava os papéis
para o contador e separava os cheques para depósito bancário’’ enquanto a
freguesia reclamava “na varanda já lotada, à espera da casa abrir’’.
O engenheiro Sérgio Keller, de 82 anos — que diz frequentar o local desde 1942,
quando ainda se chamava Bar Berlim —, acrescenta:
— Os
antigos garçons, como o Rodrigues ou o José (ambos já falecidos), sempre foram
conservadores, insensíveis a pessoas novas ou espalhafatosas. O Godoy, que já
tinha a natureza desse tipo, entrou no time.
Assim, respaldado pela tradição e por uma gerência simpática aos seus
caprichos, o garçom reinou, solene, durante décadas. Como não gostasse do calor
da varanda, apegou-se às mesas dos fundos e da praça cinco (localizadas no
canto esquerdo do salão de entrada). Senhor de seu quinhão, passou a decidir,
qual rei do camarote, quem nele teria o privilégio de entrar. Casais em mesas
grandes eram terminantemente proibidos. Jovens mais dados à conversa do que à
gastronomia eram publicamente malquistos. Para todo cliente não desejado havia
sempre uma cadeira, colocada sobre a mesa, a mostrar que aquele lugar estava
reservado.
Ex-sócio do restaurante Fiammetta, o pediatra Roberto Cooper — que lembra até a
data em que Godoy nasceu (“24 de junho, Dia de São João, que nem o nome dele’’)
—, conta que o garçom tinha “predileção por parecer carrancudo’’:
— Se
eu perguntasse “Godoy, essa mesa é sua?’’, ele respondia: “Não, é do
restaurante.” Se eu quisesse saber como estava a carne, ele dizia: “Está na
geladeira.”
Cooper cita ainda um segundo traço marcante do garçom:
— Ele
era corruptível sem ser por dinheiro. Se você pertencia ao curral dele, havia
mesa. Bastava um lance de olhar para resolver. Se não pertencia, nem adiantava
tentar.
Funcionário do Bar Lagoa
há quase quatro décadas, o garçom José Alves de Oliveira, o Zeca, de 56 anos,
comprova:
— Uma
vez ele tirou uns garotos que já estavam sentados na mesa, sob o argumento de
que estava reservada. E não estava reservada coisa nenhuma!
Em sua defesa não muito apaixonada, Godoy diz que “isso de colocar as cadeiras
em cima da mesa é conversa’’. Quanto ao filtro da clientela, diz tê-lo aplicado
“só com quem era muito saliente’’.
Em 15 de março de 1979, o general João Baptista Figueiredo foi eleito
presidente do Brasil. O fato, além de anteceder a anistia e o fim do regime
militar, atingiu Godoy de maneira comicamente particular. A autoridade
inconteste, o semblante fechado, os óculos de aro grosso e o cabelo fixado à
brilhantina tornaram a comparação inevitável. Do alto dos seus 64 anos, o
garçom, contra sua vontade, passou a ser chamado de Figueiredo.
— Ele
era a cara do Figueiredo, mas ficava danado se fosse chamado assim — lembra o
poeta Armando Freitas Filho, que costumava frequentar o restaurante com o
jornalista Tite de Lemos.
— Eu
só o chamava de Godoy. Às vezes, de Seu Godoy. Achava o apelido injusto: ele
era muito mais digno que o general.
Freitas Filho conta que,
como bom cliente, seguia à risca as regras do garçom:
— Ele
não gostava que demorássemos com os pedidos. Uma vez, após comer um prato de
carpaccio, o Tite pediu várias xícaras de café. O Godoy estava cansado de
servir a mesma coisa e reclamou: “Isso parece uma fábrica de café!”
Ainda assim, fazia questão de escolhê-lo:
— Porque
além de servir bem, ele não tinha papo furado. Era concentrado, estava ali para
fazer o serviço. Induzia todos a serem como ele, como Godoys. Traçava uma
linha: o seu trabalho como garçom ia até certo ponto, o nosso, como freguês,
começava a partir dali.
Foi por cruzar esta linha que Nora Esteves, primeira bailarina do Teatro
Municipal, acabou recriminada. A história é narrada pela médica Eliane Castelo
Branco, ex-diretora do Hospital São Vicente de Paulo:
— Eu
estava numa mesa com um casal de amigos, um deles também médico. Tínhamos
acabado de jantar, e havia uma fila enorme do lado de fora. Uma bailarina que
conhecia este médico puxou uma cadeira e sentou-se conosco, para herdar o lugar
sem enfrentar a fila.
O relato prossegue:
— O
Godoy, então, se aproximou e disse: “Não gosto da senhora, mas vou servi-la.”
Nora Esteves, que morava ao lado do Bar
Lagoa e, por isso, frequentava o lugar religiosamente, confirma:
— Eu
estou me lembrando de alguma coisa assim. Pode ter sido comigo. Eu ia muito lá
e, durante um bom tempo, o Godoy me tratou extremamente mal. Mas à força de
frequentar tanto o restaurante, ele acabou me adotando. Era como se aquilo
fosse a casa dele. No final, viramos amigos.
Godoy — ou Figueiredo — tem hoje 98 anos.
Só bebe cerveja quente. Joga no bicho na esquina de casa. Corta o cabelo uma
vez por mês no Salão De Lagoas, em Cavalcante, bairro onde morou a maior parte
da vida.
— Ele
vem aqui há mais de 50 anos — diz o barbeiro Belmiro Lagoas, de 73 anos. — É o
mesmo corte desde que o conheci: simples, baixinho.
É praticamente surdo. Tem aparelho de ouvido, mas não usa. Tem que tomar
remédio, mas não toma (quando forçado, joga os comprimidos sob a cama). Operou
catarata, mas por força do hábito, ainda leva os óculos de aro grosso no bolso
da camisa.
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Godoy recebendo o carinho do
jornalista Chico Pinheiro. |
Aposentou-se com dois salários mínimos. Divide um apartamento de sala e quarto,
na Tijuca, com a mulher, Maria de Lourdes, oito anos mais nova. O casal, que
teve quatro filhos, está junto há 68 anos. Maria de Lourdes diz que apesar da
fama de canhestro, o marido “é bom coração’’:
— Até hoje ele fala do Bar Lagoa; tem
paixão por aquilo. Às vezes, me espera sair de casa, pega um ônibus e vai para
lá sozinho.
O filho Carlos Godoy, de 62 anos, diz que a saída do restaurante, em função da
idade avançada (já tinha 83 anos), foi dolorosa.
— Ele
ficou abatido. Botava roupa de garçom para trabalhar na barraquinha de angu da
minha irmã, em Cavalcante — conta. — Até hoje fala do Bar Lagoa. Quando vê a
Regina Casé na TV, repete: “Essa não sentava comigo de jeito nenhum.”
Procurada pela Revista O GLOBO, a
apresentadora contemporizou:
— Todo
mundo fala que os garçons de lá são mal-humorados, mas sempre me senti
acolhida. Só que o meu é o Alfredo.
Nascido e criado em Cavalcante, o jornalista Sérgio Cabral diz que era fiel a
Godoy “por razões óbvias’’:
— As
pessoas no fundo riam dele. Era o chamado mau humor engraçado.
O artista plástico Milton Machado, que também fazia questão de ser servido por
Figueiredo, afirma que o garçom servia com “a doçura generosa de um morango com
creme’’.
— De
presidente Figueiredo ele não tem nada, mas do alto de seus quase 100 anos é um
garçom estadista — brinca.
Num texto publicado recentemente no jornal “Folha de São Paulo’’, o cronista
Antonio Prata defendia que “o garçom carioca é antes de tudo um nobre’’. Ele
perguntava: “Para onde você acha que foram os condes, duques e viscondes no dia
16 de novembro de 1889 pela manhã? Voltaram a Portugal? Fugiram pros Açores?’’
E, em seguida, respondia: “Nada disso: arrumaram emprego no Bar Lagoa e no
Villarino, no Jobi e no Nova Capela, no Braseiro e na Fiorentina.’’
À revista, ele continuou:
— A
questão é que o garçom carioca tem mais que autoridade. É um saco, mas tem sua
beleza, como uma pequena resistência ao mundo mercantil, da eficiência e da
falsidade.
Garçom mais antigo em atividade no Bar Lagoa, Chico Barroso, de 62 anos, diz
que Godoy tornou-se um mito tal que, certa feita, um grupo de jovens invadiu o
restaurante com a missão de levá-lo dali: era o desafio máximo de uma gincana
(conseguiram levar uma foto).
Fonte: reportagem da revista do jornal O Globo, de 12 de
janeiro de 2014. A matéria em questão foi cada da revista.
Nota:
João Godoy morreu no dia 19 de junho de 2016, a cinco dias de completar 101
anos, em casa. Deixou a mulher, Maria de Lourdes, dois filhos, cinco netos e
uma bisneta. Com toda certeza era o garçom mais folclórico da capital carioca.
João Godoy era irmão de Tote Godoy, que trabalhou por muitos anos como
motorista do DER.
Sentiu a
aposentadoria, mas as lembranças acabavam mantendo-o ativo. Em
casa, não tinha cara amarrada. Gostava de ajudar a mulher na cozinha, tomar seu
vinho e de servir a todos. Não dispensava uma festa, uma oportunidade de
dançar. E nunca deixava de fazer seu jogo do bicho. No caminho, conversava com
todos que encontrava pela rua.