segunda-feira, 23 de março de 2020

REMINISCÊNCIAS DO CAXAMBU - POR JOSÉ ERASMO TOSTES


No mês de maio o dia 13 amanheceu sombrio, sem que o velho Sol desse as caras, e logo a chuva desceu para molhar os campos e as flores, como se também quisesse festejar o Dia das Mães. Em torno da mesa, os genros, as noras, os filhos e os netos a encher as mamães de presentes, cada um comemorando a seu jeito. Dia também de Nossa Senhora de Fátima, que apareceu pela primeira vez em 1917.

Em maio as noites são mais frias e as lembranças do passado começam a povoar o meu cérebro quando deito. Eu, ainda menino, sem compromisso com as coisas do futuro, com o pensamento voltado somente para o dia-a-dia. As brincadeiras como a bola de gude, o pião, a seta, os banhos no ribeirão e outras peraltices. E nesses pensamentos vem as dos “tipos de ruas”, assim como pedintes, andarilhos, pessoas simples que viviam nas ruas e dormindo ao relento, como a Isabel dos Cachorros, por ter vários cachorros à sua volta; Neca Solão, que usava sempre um botinão ou sapatos velhos de sola grossa, usados na época, sempre com um paletó ensebado pela sujeira; outro rapaz com os cabelos arrepiados era epiléptico, chamado de Zé Cambaleão da Lacraia; uma preta velha que brigava ao ser chamada de mãe do Rundunga, o seu nome era Verônica; o Lanceiro da Índia, pôr usar na época uma bermuda, andando sempre com um pau em forma de varal onde pendurava vários badulaques: roupas, arames, panelas e sapatos velhos; o Pedro Fernandes, entregador de convites para enterro, de casa em casa como era de costume; o Waltinho Cabeçudo, vendedor de gelo raspado por uma pequena plaina, que misturava com a groselha; havia uma cadela adestrada chamada Princesa, que ia ao açougue do Lelé com uma cestinha amarrada ao pescoço, pegava a carne dada pelo açougueiro e entregava direto ao seu dono, sem ser incomodada pelos outros cães. Certo dia ao entrar ela no cio, o cão do vizinho, chamado Pimpão, comeu a carne e a Princesa ao mesmo tempo.

As ruas não eram calçadas. O terreno onde é a prefeitura servia para armar os circos, as festas da igreja e outras. Festas de São João e São Pedro, com barracas, bandeirinhas, balões e fogueiras. Sempre no dia 13 de maio promovia-se o caxambu para comemorar a abolição da escravatura, comandado por uma mulher baixinha, de um metro e meio de altura, chamada de Maria Batuquinha, apelido esse pelo batuque dos tambores, e seus companheiros: Sebastião Salú, Augusto Munheca por faltar uma mão, Iberalina, Claudino, Isabel dos Cachorros, Pedro Lima, Bibiano, Dionizio e muitos outros. Tinha como organizador das festas o Chico Violeiro, sempre de roupa preta e colete, fumando charuto barato ou cigarro com piteira. 

Na batida dos tambores os cantadores tiravam o jongo, que era um desafio aos outros cantadores (jongo é uma espécie de samba-de-roda com cantoria, estrofe e refrão, ritmado com palmas, chocalhos e tambores). Havia um que dizia assim: Vela inteira não alumia, cotoco de vela quer alumiar/ Quem nunca viu vem ver caldeirão sem fundo ferver. Outro: Saia rodada de renda de bico, apanha a laranja no chão tico-tico/ Caxambu morreu, manda enterrar e chega na porteira maninha, caxambu tá lá. E iam entoando aquelas cantigas até altas horas da noite, e bebendo cachaça. E lá pela madrugada entrou um moço branco na roda, que mais tarde ficaram sabendo que era o Dizinho do Cacheado, e tirou um jongo que dizia assim: “Oh! Inhambu tão peladinho/ Oh! Urubu cê tão cabeludo”; e todos foram cantando e foi aumentando o tom, até que o Augusto Munheca gritou: Páaara, páaara, nós estamos cantando besteira. Parou a cantoria e ‘comeram o pau’ no Dizinho.



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