Nota: crônica publicada no Jornal dos
Sports em 15 de dezembro de 2003.
Aquele sábado, 15 de dezembro de
1962, há exatos 41 anos, amanheceu nublado e abafado. Às vésperas do verão,
naquela época como hoje, fazia muito calor no Rio. O folclórico roupeiro
Aloísio Birruma, contemporâneo de Carlito Rocha (1894/1991) no lendário
Campeonato Carioca de 1948, acordou cedo, colocou as superstições na balança e
decidiu: o Botafogo iria disputar a final da tarde daquele dia, contra o
Flamengo, usando as habituais camisas de mangas compridas. Se a mandinga dera
certo desde o início do campeonato, não seria no último ato que ele iria mudar
o esquema. Até porque o treinador, Marinho Rodrigues, não se metia em sua
seara. Aloísio falou, estava falado. E como fiel seguidor de Carlito, Aloísio
sabia que não se deve provocar os deuses do futebol, obviamente chefiados por
Jesus Cristo, devoção máxima do dirigente.
Antigo jogador alvinegro, Marinho havia
participado de dois jogos em 1948 – da infeliz estreia contra o São Cristóvão
(quando o Botafogo sofreu sua única derrota) e da vitória sobre o América, ainda
no primeiro turno. De certa forma, desde o início, ficara implicitamente
combinado: Marinho mandava no time e Aloísio, no uniforme. E não havia
bicampeão do mundo que desafiasse as determinações do roupeiro: Nilton Santos,
Garrincha, Amarildo e Zagallo podiam até não gostar daquelas mangas compridas, mas
ficavam quietos em seus cantos. Quem poderia reclamar de calor era Didi. Mas
Didi já não estava no Botafogo. Disputara cinco partidas com o time, no turno,
e, tal qual um caixeiro viajante, fora tentar a sorte no Peru depois de
boicotado e renegado no Real Madrid.
A rigor, Marinho Rodrigues não estava
preocupado com o uniforme que o Botafogo iria utilizar. O ex-zagueiro direito,
substituto imediato de Rubinho na campanha de 1948, sabia que Flávio Costa, o
“professor”, iria armar o Flamengo de maneira diferente e isso sim o colocava
em estado de alerta. No lugar do já velho e surrado 4-2-4, Flávio certamente
escalaria três homens no meio de campo – Carlinhos, Nelsinho e o jovem Gérson,
pela canhota. O técnico rubro-negro sabia que teria que bloquear o setor
adversário, que sempre contava com três jogadores a partir do momento em que
Zagallo desembarcara em General Severiano, em 1958, logo após a Copa do Mundo
da Suécia. Marinho queria apenas que o Botafogo não mudasse seu esquema. Mesmo
precisando da vitória para conquistar o bicampeonato, seu time iria jogar
fechado, explorando os contra-ataques. E, de certa forma, não era difícil
enfrentar o Flamengo, precisando só do empate, sempre eufórico, empurrado pelos
gritos de guerra de seus milhares de torcedores.
O Flamengo, apesar da vantagem do
empate, tinha mais problemas. Flávio Costa agindo com certa dureza e absoluta
falta de psicologia com o ponteiro-direito, também campeão do mundo de 1958, o
saudoso Joel Martins – o dispensou no momento em que o ônibus que conduzia a
delegação rubro-negra passou pela Rua Silveira Martins, ironicamente na Praia do
Flamengo, pertinho de onde o clube fora fundado na época áurea do remo, no
Século XIX. Flávio, não podendo fazer substituições, decidiu levar apenas 11
jogadores para o Maracanã. Mandou o motorista parar o ônibus e disse ao
jogador, que começara a carreira nos juvenis alvinegros:
- Olha, Joel, não precisar de você.
Pode saltar e ir para casa.
O esquema do “professor” ficou claro.
Além de escalar Gérson no meio-campo, ele acabara de escolher o também jovem
Espanhol para jogar na ponta-direita. O técnico estava convencido de que
Espanhol, rápido e habilidoso, faria um carnaval pelo setor esquerdo do
Botafogo. Rildo era bom marcador, mas certamente faria as habituais faltas,
parte intrínseca de seu repertório. E se Nilton Santos, aos 37 anos, quase 38, viesse
socorrê-lo na condição de quarto-zagueiro, abriria uma avenida para Henrique e
Dida, que teriam apenas o veterano Jadir (ex-Flamengo) pela frente no meio da
área. Flávio sabia também que o Alvinegro teria quatro desfalques: três na
prática e um psicológico. Joel Martins, ex-Bangu, contundido, homônimo do
ponteiro rubro-negro, seria substituído por Paulistinha na lateral-direita. Zé
Maria, machucado, havia cedido seu lugar justamente a Jadir. E Arlindo, o
garoto de ouro dos juvenis da época de Jairzinho e Roberto, também sentira a
perna. Em seu lugar jogaria o pé-de-coelho Edson Praça Mauá, campeão de 1957. O
problema psicológico, obviamente, seria a nostalgia da ausência de Didi. Que
clube resistiria à ausência de um Didi? Flávio Costa só não contava com
Garrincha, com o desequilíbrio técnico e tático que teria pela frente. E
Garrincha, naquela tarde quente, exagerou na dose.
Naquele sábado, o eterno Manoel
Francisco dos Santos, então com 29 anos completados em outubro – faria com a
camisa alvinegra, com a mais absoluta e convicta das certezas, a última grande
partida de sua curta vida (1933-1982). Garrincha não fez chover, apesar do
tempo encoberto e do calor que quase sufocou os 145 mil pagantes e – é sempre
bom lembrar – abafou os dez jogadores obrigados a usar camisas de mangas
compridas.Mas jogou como nunca, como para gravar com letras de ouro sua
passagem pelo glorioso Botafogo de Futebol e Regatas. A rigor, Garrincha, Edson
e Zagallo dobraram apenas os punhos. Mas Quarentinha e Amarildo, literalmente,
arregaçaram as mangas para enfrentar, como sempre – ontem como hoje – o
adversário e a empolgada torcida rubro-negra. Quem esteve no lotado no Maracanã
naquele dia viu uma espécie de canto do cisne de um dos melhores jogadores do
mundo. A partir de 1963, a artrose corroeu ainda mais as pré-existentes
degenerações nas extremidades ósseas de suas fíbulas e fêmures. Artrose
avançada e irreversível diagnosticada pelo excelente reumatologista Nélson
Senise (1918-2001). Senise havia sido consultado, pela Juventus, após a Copa de
1962, para um diagnóstico definitivo sobre o verdadeiro estado físico do
jogador. O alvinegro de Turim queria Garrincha, mas desistiu ao saber da
gravidade da artrose.
- A artrose de Garrincha é
irreversível – diagnosticou o médico.
Até hoje o improvisado 4-3-3 de
Flavio Costa é discutido. Para uns, simplesmente não deu resultado porque
Garrincha desequilibrou totalmente o jogo. Para Gérson, o Canhotinha de Ouro,
Flávio Costa só o escalou para dar o primeiro combate a Garrincha, fazendo uma
espécie de guardião do lateral-esquerdo Jordan. E Gérson, que no ano seguinte
iria parar em General Severiano, comprado por Cr$ 150 milhões à vista – o
Botafogo vendera Amarildo ao Milan e enchera os cofres – sua missão era
simplesmente impossível. E até hoje ele diz:
- Brincadeira, certo? Como é que eu
ia marcar aquele cara, certo?
Com Armando Marques na arbitragem, o
Botafogo, todo agasalhado, meias e calções negros – Aloísio vetara as meias
cinzas de 1957 – e camisas de mangas compridas entrou em campo com Manga,
Paulistinha, Zé Maria, Nilton Santos e Rildo; Aírton, Édson e Zagallo;
Garrincha, Quarentinha e Amarildo. O Flamengo, com seu uniforme tradicional,
pisou o gramado do Maracanã com Fernando, Joubert, Vanderlei, Décio Crespo e
Jordan; Carlinhos, Nelsinho e Gérson; Espanhol, Henrique e Dida. O jogo foi
Garrinha, e Garrincha foi o jogo.
Logo aos 10 minutos, Aírton pegou o
rebote de um ataque rubro-negro e lançou Mané entre Gérson e Jordan. O número 7
alvinegro passou de passagem por seu marcador, entrou na área e chutou de pé
direito no canto direito de Fernando. Aos 35 a jogada se repetiu, sempre com
Aírton, meias arriadas, procurando Garrincha. Dessa vez, porém, Mané perdeu o
ângulo e quase da linha de fundo bateu forte para a área na esperança de
encontrar Quarentinha ou Amarildo, que estavam no lance. Caprichosamente, o
chute de Garrincha passou pelo goleiro Fernando, bateu no nariz de Vanderlei e
entrou: 2 a 0 Botafogo. Agora, para chegar ao título, o Flamengo precisaria no
mínimo de dois gols.
O terceiro e último gol, que encerrou
as esperanças rubro-negras, veio logo aos dois minutos do segundo tempo e
merece uma descrição toda especial. Amarildo, jogando com uma proteção na coxa,
recebeu na intermediária e tocou de imediato para Zagallo, nas costas de
Joubert. Zagallo, quase da linha de fundo, centrou alto sobre o meio da área. Quarentinha,
acrobático, acertou em cheio uma tesoura voadora da marca do pênati e a bola
explodiu no peito de Fernando. Por fim, Garrincha, que corria livre pela
direita, só teve o trabalho de aproveitar o rebote de Fernando e empurrar a
bola para o fundo da rede no gol à esquerda das tribunas. A torcida alvinegra,
chefiada por Otacílio Batista do Nascimento, o Tarzã, quase veio abaixo.
O lance foi tão rápido, tão
inesperado, que o experiente narrador Oduvaldo Cozzi – um dos mais brilhantes
do rádio esportivo brasileiro – se confundiu todo. Cozzi pegou a tabela
Amarildo-Zagallo e o chutaço de Quarentinha (que ele chama de Quarenta na
descrição do lance). Mas não apanhou a entrada fulminante de Garrincha. Quem
corrigiu o narrador é o ponta Otávio Name (1934-1978), que tempos depois seria
redator do Jornal do Brasil, ao lado de nomes famosos como João Máximo,
Oldemário Vieira Touguinhó, Marcos de Castro, José Inácio Werneck, Antônio
Maria Filho, João Saldanha e Sandro Moreyra e, de maneira bem mais modesta, o
locutor que vos fala. Os últimos momentos da partida na voz de Oduvaldo Cozzi
são espetaculares. São quase dois
minutos de posse de bola de Garrincha, cercado por Carlinhos, Jordan e Gérson, no
espaço mínimo de um metro quadrado. Só quem tem essa fita histórica tem a ideia
das mágicas de Mané. Nos últimos minutos, o jogo descambou ligeiramente para a
violência. Paulistinha e Dida trocaram pontapés e foram expulsos por Armando
Marques. Sobre a arbitragem por sinal, um detalhe: preocupado com o clima do
jogo, Armando jamais correu para o meio de campo nos três gols do Botafogo. Correu,
sim, para apanhar a bola aninhada na rede, dando à torcida alvinegra a
impressão de que o lance fora impugnado. Anos depois, reconheceu o equívoco,
que fez com que muitos torcedores cortassem o grito de gol.
Na época, Armando Marques reconhecia
seus erros.
Um detalhe. Garrincha, ao final da
partida, declarou que não sentira calor:
- Calor? Que calor? Estou acostumado
a jogar no sol. Com o tempo nublado é mole. Não é Zagallinho?
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