Nota: transcrito do Jornal dos
Sports, ano 2004, na série especial em comemoração ao centenário do Botafogo.
Grande injustiça é perpetrada até
hoje contra um dos mais folclóricos times de futebol que já adentraram o
Maracanã. Trata-se do Botafogo de 1977, apelidado de Time do Camburão pelo
repórter Deni Menezes.
Abatido psicologicamente com a venda
da histórica sede de General Severiano para a Vale do Rio Doce, em 76, o
Botafogo chegou ao ano de 77 carecido de afirmação. O que fazer diante da
verdadeira catástrofe? Marechal Hermes, com todo respeito, assemelhava-se a um
desterro. Os inimigos do Glorioso babavam de alegria.
Diante do quadro desolador, o
presidente Charles Borer, com a mais elogiável das intenções, tentou mudar o
medonho quadro de decrepitude reforçando o departamento de futebol. O fato é
que, trocando e comprando, de repente o Botafogo virou uma espécie de refúgio
de jogadores talentosos e problemáticos. Passaram a desfilar com a camisa da
Estrela Solitária: Perivaldo, Manfrini, Mário Sérgio, Renê, Rodrigues Neto,
Gil, Dé, Ubirajara Alcântara e Paulo César Lima, que se juntaram a Osmar,
Ademir Vicente, Luisinho Rangel e
outros. Foi misturar pólvora com fogo. Botafogo.
Foi então que num belo domingo de sol
e de clássico no Maracanã, o repórter Deni Menezes encontrava-se à espera do
ônibus que conduzia a delegação alvinegra. Dotado de rara sensibilidade, Deni, em
determinado momento, abriu o microfone e chamou o comando da jornada: “Atenção,
José Carlos Araújo: acaba de chegar o Time do Camburão...”
Pelo que me recordo, a Rádio Nacional
quase saiu do ar, tantas foram as gargalhadas que a informação provocou. Os
mais bem dotados de memória ainda podem escalar o time com Ubirajara,
Perivaldo, Osmar, Renê e Rodrigues Neto; Luisinho Rangel, Ademir Vicente, Mário
Sérgio e Paulo César; Gil e Manfrini. Na verdade, a essa altura do campeonato o
que importa não é exatamente o fato e sim a versão. E o Time do Camburão passou
à história do Maracanã como o que reuniu o maior número de nômades que o
futebol brasileiro já teve notícias. Nômades meio belicosos esclareçam-se.
Justiça seja feita, Charles Borer,
com toda a experiência de dono de empresa de segurança bancária, fez o possível
e o impossível para enquadrar o Time do Camburão. Não houve jeito. Zezé
Moreira, respeitável e veterano, abandonou o barco. Telê Santana saiu apavorado
de Marechal Hermes. Paulistinha, campeão pelo clube em várias oportunidades, não
durou mais do que cinco jogos no comando.
Quando a situação parecia
incontornável, Charles Borer decidiu enquadrar o Time do Camburão. E
simplesmente contratou o delegado Luiz Mariano para técnico e o então Homem de
Ouro Hélio Vígio para preparador físico. Mas os jogadores acabaram atraindo os
dois integrantes da briosa Polícia Civil para seu lado. Os treinos eram uma
festa.
Mas, a rigor, o que fez de notório o
Time do Camburão? Ao que consta, nada. Pelo que estou informado, os ânimos só
ficavam ligeiramente exaltados nas enfadonhas viagens de ônibus para Campos e
Volta Redonda. Para matar o tempo,
alguns jogadores viajavam armados. E, tal qual nos filmes de caubói, quando a
caravana passava por uma cidade, da janela do coletivo os jogadores disparavam
seus trabucos para o alto, numa espécie de saudação às comunidades. Qualquer
semelhança com o bando de Jesse James ou da dupla Butch Cassidy/Sundance Kid
deverá ser debitada na conta da mera coincidência. Mas que era apavorante, isso
era. Sinceramente.
Há gente do maior gabarito que
garante que o time era festeiro, nada mais do que festeiro. O bando de Lampião
era bem pior.
ANTES DO CAMBURÃO, TIMAÇO FEZ HISTÓRIA A BORDO DE UM TRANSATLÂNTICO.
O Campeonato Carioca de 1954 foi
terminar em fevereiro de 1955 e o Botafogo ficara muito mal colocado. E logo
após a recontratação de Zezé Moreira, para dar um jeito no departamento de
futebol, o clube tinha pela frente um sério compromisso: uma exaustiva excursão
à Europa, acertada pelo empresário José da Gama, com nada menos do que 18 jogos
a cumprir em curto período. É óbvio que o treinador pouco ou nada pôde fazer. Formou
um grupo, convocou alguns reservas imediatos e tomou o rumo do Velho Mundo. A
base era a do ano anterior: Gilson (Lugano), Orlando Maia, Gérson dos Santos
(Thomé) e Nilton Santos; Pampolini (Danilo) e Juvenal; Garrincha (Neivaldo),
Ruarinho, Vinícius, Dino e Hélio (Quarentinha).
A chefia da delegação,
estrategicamente, foi entregue ao jornalista e benemérito do clube Sandro
Moreyra. Sandro tinha comprovada e amistosa ascendência sobre os jogadores. E a
diretoria do Botafogo estava cansada de saber que não bastariam Zezé Moreira e
Paulo Amaral, os durões, para controlar um grupo tão heterogêneo.
O avião que conduziu a delegação do
Botafogo, um pesado e resfolegante Constelation da Panair, chegou a Madri com
horas de atraso. A rigor, pode-se dizer que o Real já estava em campo enquanto
os jogadores do Botafogo, no vestiário, tiravam o paletó e a gravata do terno
de viagem e vestiam às pressas o uniforme. O resultado: um inesperado empate em
2 a 2 na estréia.
Ao longo das 18 partidas, o Botafogo
jogou na Espanha, França, Dinamarca, Holanda, Suíça, Itália e Tchecoslováquia. Mas
não havia lógica: o time atuava na Espanha, viajava para a França, regressava
novamente para cumprir um compromisso na mesma Espanha e assim por diante.
Foram ao todo 12 vitórias, quatro empates e apenas duas derrotas, uma para o
Tenerife (2 a 1) e outra para o Racing de Paris (4 a 2).
Na manhã seguinte à vitória por 4 a 0
do Botafogo sobre o combinado Juventus-Torino, um guia turístico teve a infeliz
ideia de levar a delegação alvinegra à Basílica de Superga, numa elevação nas
proximidades de Turim. Lá, em 1949, o avião do Torino espatifara-se na montanha,
depois de bater de raspão com a asa na torre da igreja. Não houve sobreviventes
no acidente que entrou para a história do futebol como a “Tragédia de Superga”.
Durante a visita, ocorreu uma surpresa desagradabilíssima: em torno da
basílica, com a torre já reconstruída, ambulantes vendiam, como recordação
turística aos visitantes, pedaços do avião que conduzira o Torino à morte. Aqui
era um pneu, ali um pedaço enegrecido de poltrona, mais adiante parte da
fuselagem, fotos dos cadáveres carbonizados dos jogadores, objetos pessoais
encontrados nos destroços... Enfim, um lúgubre comércio, digno de filme de
terror.
O resultado? Pânico nas hostes
alvinegras. Os jogadores, ainda com compromissos a cumprir na Tchecoslováquia,
tremiam de pavor com a aproximação da viagem aérea de volta. Já no hotel,
depois do jantar, uma comissão formada pelos jogadores mais experientes
procurou Sandro Moreyra com um apelo: voltar para o Brasil de navio. Com mais
quatro partidas para cumprir na Tchecoslováquia, Sandro cedeu. O Botafogo
retornaria da Europa singrando, por duas semanas, o Oceano Atlântico.
Conta o folclore – e às vezes a
versão é mais deliciosa do que o fato – que a viagem a bordo do Conte Grande
foi uma maravilha. Num navio de luxo, alojados em confortáveis camarotes, os
jogadores conviveram 14 longos dias com milionários excêntricos, louras
frívolas e desfrutáveis, e muitos drinques. Garrincha, por exemplo, estava
sempre com uma garrafa de Coca-Cola nas mãos, sorvendo alegremente seu
refrigerante. Só que, após subornar o garçom, a Cola-Cola misturada ao rum se
transformava numa saborosa Cuba-Libre.
DOIS ANOS LONGE DE CASA
Lá pelas tantas, perdidos em viagens
de trem, ônibus e aviões, sem a mínima ideia de idiomas, países e atormentado
com a diferença do fuso horário, o ponteiro-esquerdo Hélio – que tinha o
apelido de Boca de Sandália – perdeu a noção de tempo e espaço. Já não sabia
quando havia deixado o Brasil. A história, obviamente, foi contada a este
repórter pelo brilhante Sandro. E como tal vou passá-la na íntegra.
Um certo dia, cabisbaixo, Hélio
aproximou-se de Sandro e perguntou:
- Chefe, há quanto tempo estamos
viajando?
Sandro foi curto na resposta:
- Há dois anos, Hélio.
Simplório ao extremo, o jogador se
queixou:
- Olha, seu Sandro, a essa altura
minha mulher e meus filhos, lá em Olaria, devem estar pensando que eu morri.
De imediato, o chefe da delegação
alvinegra encontrou a solução:
- Escreva uma carta para a família,
rapaz...
Foi então que Hélio apresentou um
problema insolúvel:
- O caso, seu Sandro, é que nós
estamos viajando há tanto tempo que esqueci o endereço lá de casa...


