domingo, 12 de novembro de 2023

SAUDADES DE JAGUARÉ - POR MÁRIO FILHO

 



Nota: Mário Filho foi um jornalista, cronista esportivo e escritor. Era irmão do também jornalista e escritor Nelson Rodrigues. É considerado por especialistas o maior jornalista esportivo que o Brasil já teve. Crônica publicada em sua coluna semanal da revista Manchete Esportiva, em 15/02/1958.


Quando a gente pensa num quiper para o escrete brasileiro chega a ter saudades de Jaguaré. Não foi o maior arqueiro do Brasil: Amado era melhor do que ele e também não tremia. Mas Amado, quando era o maior mesmo, de quando em quando largava o futebol. Não é que estivesse saturado, é que sempre tinha um quiper na reserva a quem queria dar uma oportunidade. Quase que fez uma escola de goleiros. Ou um viveiro de goleiros, que talvez fosse melhor chamar de viveiro a criação de goleiros cultivada, carinhosamente, por Amado. O Flamengo, porém, não se conformava com esses caprichos de Amado. Por isso quando Amado acabou, acabou-se o viveiro, e não sobrou um quiper.

 

Jaguaré era de outro tipo. Aparentemente não queria nem jogar. Dava a impressão de um malandro. Jogava com um gorro, de marinheiro, caído para um lado, e a camisa saindo do calção. Se não lhe tirassem um palito da boca entraria em campo assim mesmo, como se tivesse acabado de almoçar. Para ele o palito na boca era um sinal de elegância. Viera da Saúde, de um clube que se tornou famoso, o Pereira Passos. Na Saúde andava de tamancos, não sei se de lenço ao pescoço. Quando entrou para o Vasco largou a Estiva. Era carregador de saco de farinha do Moinho Fluminense. Mas o sonho dele era não fazer nada.

 

Tornara-se quiper porque um dia, ainda garoto, sentara-se no meio-fio, cansado de correr como louco na extrema esquerda. Do meio-fio, ainda botando a alma pela boca, Jaguaré ficou olhando o jogo. Então ele viu que exceto dois jogadores, os goleiros, os outros todos corriam de um lado para o outro, não paravam, se matando em campo, que era o meio da rua, mas que era como se fosse campo, porque no campo era a mesma coisa. Todos os jogadores, foi a conclusão de Jaguaré, eram trouxas, ou otários – a palavra “otário” já aparecia em tangos argentinos – todos eram bobos menos os goleiros que ficavam parados entre dois paralelepípedos, à espera de uma bola.

 

Naquele momento se decidiu a carreira de Jaguaré. Foi assim que ele se tornou quiper, embora não fosse outra coisa. Não tinha nada de extrema-esquerda. Naquele tempo, lá se vão mais de trinta anos, um extrema-esquerda tinha que ser um tico de gente. E Jaguaré era alto, mais de um metro e oitenta. Se não desse para quiper podia dar para beque ou centroavante, porque tinha um chute que só vendo. O chute dele era tão forte que atravessava a arquibancada do Vasco, de trinta metros de altura. Somente dois outros jogadores fizeram o mesmo: Espanhol, que viera do Pereira Passos, como Jaguaré, e Pereira Peixoto, que foi melhor como juiz.

 

Foi por causa de chute, de fura rede, que, jogando no Olimpique de Marselha, depois de engolir um gol, Jaguaré foi para o ataque. Trocou de roupa com o centroavante, ninguém compreendendo direito o que estava acontecendo, foi para frente, pegou uma bola e fuzilou o quiper do outro time. Feito o gol, trocou de novo a roupa, ficou outra vez, já sossegado, debaixo dos três paus. Depois explicou aos jornalistas atônitos que na terra dele era assim. Quando um quiper brasileiro engolia um gol tinha de lavar a honra fazendo um gol do outro lado.  

 

Naturalmente o Olimpique de Marselha, embora encantado com o gol de Jaguaré, que foi a sensação da tarde, avisou-o que não podia mais fazer isso. Jaguaré ainda perguntou pela honra dele, pela honra do quiper. Responderam-lhe que ele não estava no Brasil, que ele estava na França e que na França a honra do quiper tinha que ser defendida era no gol. Jaguaré se conformou e nunca mais se meteu a trocar de camisa com o centroavante do Olimpique. Continuou fazendo outras coisas, que fazia no Brasil e que na França provocavam verdadeiros escândalos, como rodar a bola na ponta do dedo, depois de uma defesa.

 

Foi uma mania que nunca perdeu. O futebol, para ele, só tinha graça por causa dessas coisas. Mas em Londres, quando o Olimpique foi lá, ele teve o grande choque da vida dele. Pegou uma bola, o centroavante inglês foi para cima dele, ele passou a bola por cima da cabeça do inglês, de uma das mãos para outra. O atacante inglês ficou estatelado, mas o juiz, também inglês, parou o jogo e mandou o capitão do time francês avisar Jaguaré: se ele fizesse outra, igual ou parecida, estava fora de campo. Nasceu aí a grande admiração de Jaguaré pelo futebol inglês.

 

Aqui todo mundo ria quando Jaguaré defendia a bola e a jogava na cabeça do atacante que vinha para cima dele para pegá-la de novo. Quando dava certo, e quase sempre dava certo, era uma gargalhada que fazia tremer o estádio. Jaguaré era uma espécie de palhaço do futebol. Parecia que jogava para divertir os outros. Na verdade nem jogava para se divertir, embora se divertisse às vezes. Tinha-se a impressão de que ele, mesmo vindo da Saúde, era um blasé do futebol, que procurava inventar emoções novas para não sucumbir de tédio em meio a uma partida.

 

Se não jogasse futebol tinha de carregar de novo sacos de farinha no Moinho Fluminense. Mas ele gostava do futebol. Chamava a bola de bichinha. Segurava-a nas pontas dos dedos com um carinho de amante, como se não quisesse machucá-la. A bola saía deformada dos pés de um tijoleiro e nas mãos de Jaguaré encontrava a paz num simples toque. Nunca vi ninguém que pegasse uma bola com mais leveza, como se ela fosse um biscuit, ou um filho recém-nascido. Era o Dengoso, o Jaguaré. Mas andou enganando todo mundo. Tanto que Welfare quase levou uma facada dele porque um dia escalou Waldemar Chuca-Chuca no gol.

 

Welfare achava, como todo mundo, que Jaguaré só jogava porque não havia outro jeito. E Jaguaré, no fundo, queria era jogar e dava a vida para jogar. E não admitia outro quiper no Vasco. Bastava aparecer um pretendente ao gol do Vasco, Jaguaré fazia-se de amigo dele, levava-o para treinar, mandava-o para debaixo dos três paus e enchia o pé e para cima do novato. Eram chutes de matar. No dia seguinte o pretendente ao gol do Vasco não aparecia mais, que não era louco. E Jaguaré passava uns tempos livres de preocupações, o lugar era dele e de mais ninguém.  

 

Pode-se dizer que era um irresponsável. Mas dessa irresponsabilidade que não acredita em perigo de espécie alguma, boa para um jogador de escrete. O mal do jogador brasileiro tem sido o de tremer, o de não agüentar a responsabilidade na hora da decisão. O jogador brasileiro pensa no Brasil, nos sessenta milhões de brasileiros e treme: Jaguaré não pensava não pensava nem no jogo até a hora de entrar em campo. No célebre Vasco x América, a última da melhor de três em 1929, os jogadores do Vasco e América estavam que nem pilhas. Fausto parecia uma fera enjaulada, de um lado para o outro. Enquanto isso, na mesa de massagens, Jaguaré ressonava, roncava, como se nem fosse haver o jogo.  

 

 

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