sexta-feira, 11 de maio de 2018

VIDA E OBRA DO MIRACEMENSE DIRCEU CARDOSO



Texto de 2001 de autoria de Rogério Medeiros.
Sugerido por Dr. Maurício Monteiro.

Dirceu Cardoso nasceu em Miracema em 4 de janeiro de 1913, filho do jornalista e político Melchíades Cardoso e Adalgisa Cardoso Leite. Melchíades foi Prefeito de Miracema por dois mandatos. Período em que Miracema e Pádua eram iluminadas pelos famosos lampiões belgas. Formou-se em direito pela Universidade Federal Fluminense, especializando-se em direito criminal. Retornando a Miracema lecionava no Colégio Miracemense. Nesta época, no internato do Colégio de Pádua havia uma grande quantidade de alunos oriundos da cidade de Muqui (ES), grande produtora de café. O Professor Lavaquial Biosca recebeu na ocasião um pedido da cidade capixaba para indicar um professor que iria dirigir o recém-criado Ginásio em Muqui. Lavaquial, conhecendo a capacidade do jovem advogado e professor Dirceu Cardoso, lhe fez o convite, prontamente atendido. Foi o seu primeiro desafio. Em pouco tempo transformou o Colégio de Muqui na maior e melhor escola do Sul do Espírito Santo. Líder inconteste e iniciando a sua extraordinária carreira política, foi eleito prefeito de Muqui, Deputado Estadual por duas vezes, Deputado Federal por mais dois mandatos e Senador da República. Foi ele quem leu na tribuna do Senado a carta de renúncia do presidente Jânio Quadros. No Espírito Santo foi ainda Secretário de Educação e Secretário de Segurança Pública. Faleceu aos 90 anos de idade, em 6 de maio de 2003, na cidade do Rio de Janeiro, mas foi enterrado em Muqui, onde iniciara sua carreira política.

Como os grandes felinos da Mata Atlântica, que chegam às margens dos rios e das lagoas na velhice à espera da morte, a figura mais lendária da política capixaba refugiou-se numa pequena cidade ao sul de Vitória com o mesmo propósito: “Estou esperando a morte aqui como compensação pela vida. Mas ela está demorando, já deveria ter chegado. O corpo fraqueja, a dor chega. Além do mais, eu quero ir dormir com a minha querida companheira, enterrada no cemitério daqui.”

Quem almeja a morte com tanta ansiedade é a própria figura da decência e da honestidade do político capixaba: o ex-deputado e ex-senador Dirceu Cardoso. Aos 88 anos de idade, ele voltou para Muqui, onde iniciou a sua vida pública, com este propósito, mas relativamente esquecido na memória do Estado e até na própria localidade que escolheu para homenagear com o seu cadáver.

Mas é difícil acreditar que o corpanzil que ele ainda ostenta hoje esteja já na hora de ir para o cemitério. O seu corpo com os devidos descontos do tempo é quase o mesmo que botou muita gente para correr nos seus cinquenta e tantos anos de vida pública. Bravo como uma onça, não foi, aliás, sem sentido que o repórter usou a imagem dos felinos para compará-lo. Dr. Dirceu, como sempre foi chamado na intimidade, resolveu muitos casos no muque.

Sua trajetória política é povoada de cenas de valentia. Quando líder do governo na Assembleia Legislativa, nos anos 50, ele acabou com a obstrução da oposição, feita por tenazes deputados, entre eles um célebre orador, Eurico Rezende, pegando o projeto das mãos dos adversários, rasgando-o como um brutamonte, pois era volumoso, lançando-o pela janela do plenário, numa época em que as janelas eram abertas, pois não havia ainda ar-refrigerado na Assembleia.

O forte do Dr. Dirceu sempre foi a honestidade e o seu zelo por ela. Construiu uma história neste ramo. Se em favor dela fosse necessário acabar com alguém, ele não pestanejava, fez inimigos às pencas. Seu lema era: “Para pôr fim a um corrupto, era necessário acabar com ele”. De temas como este, ele construiu sua vida pública, mas dando belos exemplos de honestidade. Tanto que vive hoje da renda de uma pequena propriedade agrícola, que lhe oferece, nos seus melhores anos, uma minguada safra de 200 sacos de café, que complementas sua aposentadoria.

Mora numa antiga casa no centro de Muqui (ES), herança da sua esposa, na companhia de um cozinheiro e um acompanhante, que o vigia como um cão de guarda. Dr. Dirceu é pai de quatro filhas, mas todas elas moram fora do Estado. Raramente o visitam. A que aparece é Liana, professora universitária, residente no Rio de Janeiro. Quando ela chega, ele vive doces momentos de carinho: Paizinho pra cá, Paizinho pra lá; A velha carranca se desmancha diante das manifestações de afeto da filha.

Mas a maior parte do tempo ele está sozinho, agarrado a uma leitura no porão da casa, onde conta com uma velha biblioteca e uma centenária cadeira, que faz parte do rol das suas preferências na casa. Mas todos os dias pela manhã, com uma pontualidade britânica, sai de casa para ir a agencia do Banco do Brasil conferir sua conta. Veste-se com o mesmo apuro de quando se dirigia ao Congresso Nacional. Coloca um velho terno de linho. Única mudança no traje está no chapéu que foi obrigado a usar para proteger sua vista deficiente.

À tardinha ele dá uma volta inteira no quarteirão da sua casa. Aos domingos, ele veste com o melhor traje, munido de um buquê de flores, visita o túmulo da sua mulher. A visita ao cemitério ocorre invariavelmente muito cedo. Costuma sair de casa as 5h 30 da manhã. No mês passado, protagonizou, por causa desta sua pontualidade, uma cena de alto risco: não tendo achado a chave do cadeado do portão, resolveu pular o muro. A sorte é que os vizinhos viram e o socorreram.

Mas há quem diga em Muqui, com alguma ironia política, é claro, que o Dr. Dirceu vai de madrugada ao cemitério para não ver a sepultura de seu principal inimigo político, que, por obra do destino, foi enterrado próximo à sepultura da sua mulher. A mágoa com o defunto vizinho é realmente grande, pois, como prefeito da cidade, ele mandou derrubar os pavilhões que formavam o conjunto do colégio do Dr. Dirceu. Foi inclusive, em seu tempo, anos 40/50, o maior educandário do sul do Espírito Santo. O colégio chegou a ter 430 alunos internos.

Arrependimento: ter trocado a vida de professor pela de político. Feitos que notabilizaram sua carreira política, lembrados na hora da entrevista pelo repórter, não foram, sequer, capazes de livrá-lo da angústia da renúncia do educador. E olha que na política ele contabiliza feitos memoráveis. Em certo momento, parou o Senado sozinho, impedindo que fossem votados inúmeros empréstimos externos. Foi uma luta titânica, ainda por cima temerária, pois foi feita em pleno regime militar. Dr. Dirceu foi senador de oposição pelo MDB.

Ao lembrar essa sua vitoriosa luta no Senado, o repórter mexeu com a sua memória e ele foi buscar outras imagens guardadas de sua trajetória política. Entre elas a de ter conseguido com o presidente Juscelino Kubitschek criar a Universidade Federal do Espírito Santo. Foi o último ato que o presidente assinou: “briguei até o fim para conseguir que o Espírito Santo também tivesse a sua universidade pública.”


Ele também foi um grande orador. É célebre seu discurso, no salão nobre da Assembleia Legislativa, na cerimônia de despedida de um colega deputado morto. Diante de uma plateia silenciosa e de uma família entristecida, ele finalizou sua fala dizendo: “e a política é assim, minha senhora (dirigindo-se à viúva), quando devolve o político à família, é dentro de um caixão. Leve-o que é seu.”

Mas hoje ele acha que a política não é bem assim. Já há muita gente tirando proveito dela. A honestidade que marcou a sua conduta não é mais tão primordial para os políticos de hoje. Provavelmente o barro que fez Dirceu Cardoso não é encontrado mais, escreveria, com certeza, um bom biógrafo. A grandeza do Dr. Dirceu está em transcender o papel do político honesto. Ele foi, sobretudo, um político que se lançou numa luta sem trégua pela moralidade pública, como o festejou, em recente encontro (aliás, um dos raros políticos que ainda o visita), o ex-deputado Roberto Valadão.

A trajetória política do Dr. Dirceu fez com que se acumulassem muitos ódios contra ele. O episódio do colégio é um, assim como terem matado de inanição financeira o seu jornalzinho, que, por quase 30 anos, editou, com o nome de "Município", numa modestíssima gráfica. Era um semanário com o qual incomodou gregos e troianos. Hoje os restos da antiga gráfica enferrujam no fundo do seu terreno, corno uma lembrança cruel do seu combativo período de jornalista. 

O episódio do Colégio, bem como o do seu jornal, são duas lembranças terríveis. Ele fala deles com o sentimento da mágoa. Não mais como um leão rugindo, como foi a sua marca na carreira política. Seu único desejo, além da morte, é voltar ao Senado para repovoar a mente dos lances que viveu lá. Mas cadê dinheiro para a passagem? O político que tinha tudo à disposição nunca fez uso das facilidades e muito menos acumulou para o fim de vida. É pobre. 

Mas um pobre que vive em solidão com os seus pensamentos, sem ter praticamente com quem conversar. Daria até para parafrasear, apesar da angustiante comparação, um dos primeiros contos de Gabriel Garcia Marquez: Ninguém Escreve ao Coronel. Não é sem razão que ele vive a rogar a chegada logo da morte, mas observando alguns desejos seus. Por exemplo, não quer banda de música nos seus funerais, mas sim uma Folia de Reis (belo folclore da região) acompanhando o caixão. 

Sua expectativa ainda para esta hora é que possa se comportar como um legitimo cavalo árabe: que não baixa a cabeça e vai olhando para o céu.

Abaixo descrevo alguns tópicos de sua Biografia encontrada no site da Câmara Municipal de Muqui:

* Foram seus irmãos Nadeje, Danilo, Liége, Evelyn, Brissac e Expedito. Gostava de jogar bola e banhar-se no Ribeirão Santo Antônio e vendia goiabada pelas ruas para ajudar seus pais. Cursou o primário no Ginásio Estadual Dr. Ferreira da Luz, o secundário no Ginásio de Miracema.
* Formou-se aos 16 anos e manifestou desejo de estudar Direito. Foi para Niterói onde cursou os 4 anos de Universidade e aos 20 anos formou-se advogado. Sem dinheiro não pôde comprar o terno para a formatura, o que não lhe permitiu participar das solenidades. Voltando a Miracema, lecionou História Natural e Biologia no Ginásio de Miracema nos idos de 1933.
* Ao iniciar-se a Campanha Separatista (para separar Miracema de Pádua) já aos 20 anos tornou-se uns dos principais oradores dos comícios em cada esquina e com outros oradores formou um grupo chamado "Os Quatro Diabos", sendo um deles seu pai, um proeminente jornalista, entre outras atividades. Em 1934, o Interventor do Estado do Rio cedeu ao movimento e deu a Dirceu a incumbência de entregar uma carta ao Almirante Ary Parreiras onde concordava com a separação de Miracema da cidade de Pádua.
* Foi considerado pela Imprensa como o Senador mais atuante em 1980 e eleito O Senador do Ano em 1981 especialmente pela sua "luta de um homem só" contra a inflação, a corrupção, as mordomias e o desperdício de dinheiro público, sendo verdadeiro paladino da instituição parlamentar. Reeleger o grande senador capixaba foi um ato de justiça do povo do Espírito Santo.
* A idade já pesava e não concorreu a Governador do Estado do Espírito Santo. Foi convidado por Tancredo Neves para ser subchefe da Casa Civil, afirmando que não cederia Dr. Dirceu ao Estado. Depois de cumprir seu mandato de Senador, foi Secretário de Segurança Pública e Presidente do Porto de Vitória de 1985 a 1990. Voltou a Muqui, sua terra adotiva, neste meio século de vida política, raramente usava um carro oficial, não empregava familiares ou amigos e terminou seus dias em Muqui praticamente sozinho com uma modesta aposentadoria.
* A Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo em Vitória deu seu nome ao plenário, hoje Plenário Dirceu Cardoso, assim como Miracema, sua cidade natal, em 2005, ao prédio da Câmara Municipal, cujos móveis maciços, no local até os dias de hoje, foram entalhados por seu pai, Melchíades, além de jornalista e escritor, um excelente carpinteiro.

Obrigado, Dr. Dirceu Cardoso! Muqui se sente honrada por tê-lo recebido. 





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